5 de fevereiro de 2025
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As famílias de vítimas da ditadura que esperam novas certidões de óbito reconhecendo crimes do regime: ‘Falta saber quem matou meu pai’

A certidão de óbito do ex-deputado Rubens Paiva, cuja história é contada no filme Ainda Estou Aqui, foi retificada na quinta-feira (23/1). A informação foi revelada pela TV Globo e confirmada pela BBC News Brasil.

A família de Paiva, assim como a de outros 413 mortos e desparecidos durante a ditadura militar, recebeu a nova certidão de óbito graças ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), por meio de uma determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do fim do ano passado.

A determinação prevê que os cartórios modifiquem os documentos, que deverão conter a seguinte informação no campo “Causa da morte”: “Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964“.

Muitas das certidões ainda tinham esse campo preenchido apenas como “desconhecida”, ou registrada “de acordo com a lei 9.140”, a Lei dos Desaparecidos Políticos. Essa lei reconheceu como mortas pessoas que sumiram em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas durante a ditadura.

A primeira certidão retificada após a resolução do CNJ foi de Carlos Danielli, ex-dirigente do Partido Comunista, morto em 1972.

As alterações atendem a uma das 29 recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Instituída em 2011, a Comissão teve o papel de investigar as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura. Seu trabalho se estendeu até a entrega do relatório, em 2014.

A Comissão coordenou o trabalho de busca e reconhecimento de ossadas de possíveis mortos e desaparecidos na ditadura e a expedição das certidões de óbitos, mesmo daqueles que jamais foram encontrados, como foi o caso de Rubens Paiva.

Algumas certidões já haviam sido alteradas após o trabalho da CNV. “Já vinhamos trabalhando nisso há muito tempo”, diz Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão. Mas sem a determinação do CNJ, ela diz que alguns cartórios se recusavam a realizar a retificação. “Agora com a participação do CNJ tudo mudou.”

Um caso emblemático dessa conquista foi o da família do jornalista Vladimir Herzog, que conseguiu, em 2012, a

retificação do documento que, até então, apontava suicídio como a causa da sua morte.

Seis anos mais tarde, a jornalista e advogada Lygia Jobim, filha do diplomata José Pinheiro Jobim, também recebeu um novo atestado de óbito do pai, constando que o Estado brasileiro foi o responsável por sua morte.

“Eu me lembro bem daquele dia. Fiquei emocionadíssima. Peguei o documento, olhei em volta na rua. Entrei no supermercado, pedi um café e fiquei ali”, diz Lygia à BBC News Brasil.

“É uma emoção muito grande e, ao mesmo tempo, estranha, porque ninguém fica feliz quando recebe um atestado de óbito.”

Quando foi sequestrado e morto, em 1979, Jobim estava escrevendo um livro que prometia revelar um esquema de corrupção envolvendo a usina hidrelétrica de Itaipu.

Foi encontrado pendurado pelo pescoço em uma cena montada, assim como Herzog, conforme foi reconhecido pela Justiça anos mais tarde. Ainda assim, sua certidão trazia a causa da morte como “indefinida”.

Foto em preto e branco de um homem jovem, de pele clara, usando óculos de grau.
O diplomata José Jobim foi sequestrado e morto durante a ditadura

Em 2019, no primeiro ano de seu governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro mudou a composição da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, trocando quatro dos sete integrantes, e os processos de retificação das certidões de óbitoficaram emperrados.

Depois, faltando 15 dias para o fim do seu mandato, Bolsonaro extinguiu de vez a comissão, paralisando completamente os processos.

A ativista dos direitos humanos Maria do Amparo Araújo ficou nesse meio do caminho.

Pediu a retificação do documento do irmão, Luiz Almeida Araújo, com quem ela militava na Ação Libertadora Nacional (ALN), e do companheiro, Luiz José da Cunha, ambos mortos pela repressão. Mas só conseguiu retificar a certidão do irmão.

“O pedido do meu companheiro foi negado”, conta ela, que é fundadora da ONG Tortura Nunca Mais.

“Recorri, e o pedido foi negado de novo. Isso significa que não havia um procedimento padronizado [para realizar as retificações] como está se pretendendo que seja agora [com essa resolução do CNJ].”

Para ela, a notícia sobre a retificação de todas as certidões de óbito é uma formalização da responsabilização do Estado pelas mortes políticas durante a ditadura. Mas não é o suficiente.

“As pessoas continuam desaparecendo porque são mortas pela Polícia Militar.”

A desmilitarização das polícias estaduais é outra das 29 recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Embora o documento tenha sido entregue há dez anos, um levantamento do Instituto Vladimir Herzog, realizado antes dessa decisão do CNJ, mostrou que uma parcela muito pequena das recomendações foram cumpridas até agora.

Dos 29 apontamentos, apenas dois foram integralmente concretizados.

O primeiro foi a introdução da audiência de custódia, em 2015. Esse mecanismo garante que o acusado por um crime, preso em flagrante, tenha o direito de ser ouvido por um juiz, em até 24 horas após a detenção, para que sejam avaliadas eventuais ilegalidades da sua prisão.

A outra recomendação atendida, em 2021, foi a revogação da Lei de Segurança Nacional. Criada durante a ditadura militar, a lei previa, dentre outras coisas, pena de até quatro anos de detenção por “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, ou por “incitar a subversão da ordem política ou social ou a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”.

Abertura dos arquivos

Emocionada, a especialista em finanças Marta Costa, sobrinha da guerrilheira Helenira Resende de Souza Nazareth, conta que a retificação da certidão de óbito de sua tia é um passo muito simbólico.

“É muito significativo. Minha tia, Helenalda, tentou por anos conseguir essa retificação”, diz. “Hoje, ela está com 84 anos. Essa conquista é uma devolutiva dessa luta de tantos anos.”

Helenira, cujo codinome era Fátima, fez parte da Guerrilha do Araguaia, um movimento de resistência à ditadura ocorrido na região amazônica, quando desapareceu.

Seu corpo jamais foi encontrado, e a família nunca conseguiu realizar uma cerimônia fúnebre.

“Conseguimos trazer as ossadas do Araguaia para a UnB [Universidade de Brasília], mas elas estão paradas lá há anos”, diz Marta. “Existe essa ansiedade de saber se a minha tia está lá e se poderemos seguir, fazer o sepultamento.”

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