5 de fevereiro de 2025
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Quem foi Padre Anchieta, fundador de SP, o ‘santo de casa que não faz milagre’

Como costumava dizer o historiador e arquiteto Benedito Lima de Toledo (1934-2019), São Paulo é das raríssimas grandes cidades do mundo que tem uma certidão de nascimento — data e local exato de sua fundação, além dos nomes de seus “pais”.

No caso, o marco inaugural da maior metrópole da América do Sul é uma pequena missão religiosa iniciada por um grupo de 13 padres jesuítas no dia 25 de janeiro de 1554.

Naquela manhã de quinta-feira, com céu claro e poucas nuvens, eles rezaram uma missa no coração da então aldeia de Piratininga, depois de subir a difícil trilha que saía da vila de São Vicente, então sede da capitania, no litoral paulista.

Entre os nomes mais proeminentes daqueles religiosos estavam o dos sacerdotes Manoel da Nóbrega (1517-1570), que era o superior do grupo, Afonso Brás (1524-1610) e Manoel de Paiva (1508-1584), que foi o celebrante da missa.

Mas quem mais se destacaria dali por diante, tendo seu nome cravado e conhecido entre os fundadores de São Paulo, foi o jovem noviço José de Anchieta (1534-1597), que nem sequer tinha completado 20 anos.

Conforme conta à BBC News Brasil a historiadora Larissa Maia Artoni, especializada na trajetória da Companhia de Jesus, Anchieta tinha a função de escrever a respeito daqueles acontecimentos para reportar à cúpula da ordem, por meio de cartas enviadas à Europa.

Artoni trabalha no Pateo do Collegio, complexo histórico, cultural e religioso mantido pelos jesuítas no marco fundador da cidade de São Paulo.

A data de fundação do município só é conhecida por conta de uma carta redigida por Anchieta a seus superiores da ordem em Portugal. “A 25 de janeiro do ano do Senhor de 1554 celebramos, em estreitíssima casinha, a primeira missa, no dia da conversão do apóstolo São Paulo, e, por isso, a ele dedicamos nossa casa”, escreveu.

Em 2014, 480 anos depois de seu nascimento e 460 anos após aquela missa, o papa

Francisco canonizou-o. Com uma peculiaridade: no detalhado processo que a Igreja tem para conferir tal reconhecimento a alguém, o sumo pontífice dispensou Anchieta da comprovação de algum milagre.

Assim, a velha frase de que “santo de casa não faz milagre” tornou-se fato incontestável para todos os paulistanos.

“Os seus dados biográficos são bem conhecidos e documentados, origem, formação educacional, ação apostólica e trabalho intelectual. A sua vinculação aos jesuítas e o desempenho de missões no além-mar valeram-lhe a notoriedade. Esta é derivada de sua entrega e dedicação em tarefas de atração e de conversão dos indígenas, ao longo da zona costeira, entre a Bahia e o litoral sul do atual estado de São Paulo”, diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista.

“A posteridade foi quem consagrou sua conduta e os resultados laicos e religiosos para os quais contribuiu desde que chegou ao Novo Mundo: o engajamento de lideranças e de grupos indígenas no trabalho de colonização, defesa e aproveitamento da terra; fortalecimento e consolidação da autoridade espiritual e institucional da Igreja na vida cotidiana; a eficácia didática que alcançou na propagação da fé, a partir da interação com usos e costumes indígenas, pela valorização da música, do canto, da palavra, da encenação, como recursos de comunicação individual e grupal”, acrescenta.

Vista aérea do Páteo do Colégio, em São Paulo
Pátio do Colégio está ao lado do marco fundador de São Paulo

Intelectual e dramaturgo

Nascido em San Cristobal de La Laguna, cidade da ilha de Tenerife, no arquipélago das Canárias, na Espanha, Anchieta foi um grande intelectual e religioso de seu tempo. Filho de uma descendente de nobres e de um revolucionário basco que se tornou prefeito daquela cidade, mudou-se aos 14 anos para Coimbra, em Portugal, para estudar filosofia no Real Colégio das Artes e Humanidades. Em 1551, aos 17 anos, decidiu ingressar na Companhia de Jesus, abraçando assim a ordem religiosa.

“Embora sendo espanhol, ingressou na Companhia de Jesus no Reino de Portugal, ficando ao seu serviço, e encaminhado ao Brasil para evangelizar a nova terra. Por isso é considerado um dos fundadores das cidades brasileiras de São Paulo e do Rio de Janeiro”, aponta à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.

Teve tuberculose e sofria de escoliose. “Já no noviciado ele era descrito como uma pessoa que padecia de muitas dores”, comenta Artoni.

Em 1553, respondendo a um pedido do provincial dos jesuítas no Brasil, o padre Nóbrega, chegou a Salvador. Três meses depois, foi enviado à capitania de São Vicente.

Foi por isso que no ano seguinte ele esteve na missa fundadora daquela comunidade. Naquele primeiro ano, o pequeno povoado ao redor do colégio utilizado para catequizar os indígenas tinha 130 pessoas. De acordo com cartas da época, os religiosos conseguiram, no período, batizar 36 deles.

Naquele momento, seu papel não era de liderança. “Foi, antes, mais um servidor da companhia, devotado e atuante, disciplinado e confiável, no processo de evangelização dos povos nativos e no zelo dos preceitos da Igreja e do poder real no Novo Mundo”, diz Martinez.

“A doutrina da fé era o principal instrumento de ação e de administração dos fiéis, novos, antigos e recém-convertidos. Aos jesuítas competia o controle das almas, enquanto a administração portuguesa, civil e militar, estava empenhada na coordenação e no trabalho dos corpos. Os conflitos não foram raros, nem pequenos.”

A intelectualidade e a veia artística de Anchieta foram muito úteis para os propósitos da Companhia de Jesus no Brasil. Ele circulou pelo sertão desconhecido aos portugueses e interagiu com muitos indígenas. Aprendeu tupi e ensinou latim aos nativos. A primeira gramática escrita sobre um língua do tronco tupi é de sua autoria: ‘Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil’, livro publicado em Coimbra em 1595.

“Chegando ao Brasil ele se afeiçoou ao indígena nativo e escreveu a primeira gramática da língua tupi. Poeta nato, ele foi um dos primeiros autores da literatura brasileira, para a qual compôs inúmeras peças teatrais e poemas religiosos entre outros. É considerado e proclamado, portanto, o Apóstolo do Brasil. Sua fama de santidade perdura até hoje”, lembra Lira.

Também escreveu peças teatrais e poemas de cunho religiosos e utilizava as artes cênicas como recurso na catequização dos indígenas. Tanto que é considerado dramaturgo, gramático e poeta e se tornou patrono da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Música.

Além disso, atuou como uma espécie de farmacêutico. “Ele foi muito além [do sacerdócio]”, afirma Artoni. “Foi, por exemplo, o primeiro boticário da cidade de São Paulo. Aprendeu com os indígenas a medicina tradicional e aliou esse conhecimento com o que ele tinha, da Europa, para produzir medicamentos para ajudar na cura dos adoentados. Também confeccionou alpargatas para os missionários e teve uma missão muito plural, exercida de forma ampla.”

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