14 de junho de 2025
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Extrema direita nos EUA: uma história em ondas

Revista Fórum – Do Ku Klux Klan a Donald Trump, como o racismo estruturou a política da autoproclamada “maior democracia do mundo”.

Embora os Estados Unidos se autoproclamem “a maior democracia do mundo”, com uma fundação baseada em ideais como liberdade e direitos individuais, a extrema direita sempre foi parte constitutiva — ora subterrânea, ora dominante — de sua história. Ela moldou instituições, definiu políticas e influenciou profundamente a cultura política do país.

Desde sua origem, os EUA foram construídos sobre valores iluministas, mas também sobre a escravidão racializada, o genocídio indígena e o patriarcado legalizado. A Declaração de Independência de 1776 proclamava que “todos os homens são criados iguais”, enquanto muitos de seus signatários, como George Washington e Thomas Jefferson, eram donos de pessoas escravizadas.

Essa contradição fundacional não é acidental. A noção de liberdade nos EUA sempre foi restrita, seletiva e racializada — destinada a homens brancos, proprietários, protestantes. E, desde então, foi acompanhada por formas estruturadas de exclusão, repressão e supremacia.

Abolição da escravidão e gênese da extrema direita moderna

A abolição em 1865 não produziu transformação estrutural. Ao contrário: provocou uma reação violenta de setores brancos no Sul, com o surgimento do Ku Klux Klan (1866) e outras organizações terroristas. Durante a Reconstrução (1865–1877), tentativas de garantir direitos aos ex-escravizados foram sabotadas por leis racistas, como os Códigos Negros e as Leis Jim Crow, institucionalizando a segregação por quase um século.

A extrema direita se articulava com elites agrárias, igrejas protestantes conservadoras e redes paramilitares, influenciando profundamente o Judiciário, a polícia e a política regional, especialmente no Sul.

Primeira onda (1915–1940): renascimento do Ku Klux Klan e anticomunismo primitivo

As transformações econômicas e sociais do início do século XX — industrialização, urbanização, Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão — criaram um terreno fértil para discursos autoritários e nativistas. A primeira onda da extrema direita foi marcada por:

  • Renascimento do Ku Klux Klan (1915), impulsionado pelo filme The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação);
  • Expansão nacional do Klan com agenda racista, xenofóbica, anticomunista e moralista protestante;
     
  • Milhões de membros, com influência política em estados como Indiana;
     
  • Influência legislativa, incluindo a Lei de Imigração de 1924;
     
  • Red Scare (1919–1920): perseguição a comunistas, sindicalistas e imigrantes.

Grupos fascistas como o German-American Bund e figuras como o padre Charles Coughlin difundiam teorias antissemitas e autoritárias, atingindo a classe média empobrecida.

Essa primeira onda foi massiva, organizada e legitimada, deixando um modelo que inspiraria movimentos futuros.

Segunda onda (1950–1970): a reação aos direitos civis e o neofascismo pós-guerra

Mesmo após a derrota do fascismo na Segunda Guerra, o autoritarismo interno se reorganizou. O anticomunismo da Guerra Fria, liderado por Joseph McCarthy, instaurou um clima de perseguição e censura. Paralelamente, o movimento pelos direitos civis enfrentava resistência violenta:

  • Grupos como o Klan e os Citizens’ Councils atacavam ativistas;
     
  • A extrema direita infiltrava-se em instituições locais e estaduais;
     
  • Racismo disfarçado de “manutenção da ordem” justificava repressão.

Movimentos ultraconservadores, como a John Birch Society, e o crescimento do fundamentalismo cristão moldaram a retórica moralista. A eleição de Richard Nixon em 1968 consolidou esse ciclo, com sua “Southern Strategy” e apelo à “maioria silenciosa”.

A segunda onda organizou redes políticas e discursivas que moldariam o conservadorismo moderno.

Terceira onda (1980–2000): a aliança entre neoliberais, evangélicos e nacionalistas

Com Ronald Reagan, a direita assumiu nova roupagem: neoliberalismo econômico aliado a moralismo religioso. Privatizações, ataques a sindicatos e cortes sociais vieram acompanhados do discurso dos “valores da família”.

A direita cristã, com grupos como a Moral Majority e a Christian Coalition, tornou-se protagonista. A mídia conservadora, como a rádio de Rush Limbaugh e a Fox News, alimentava uma guerra cultural contínua.

O racismo agora vinha codificado: “lei e ordem”, “guerra às drogas”, “cidadãos de bem”. Cresceu também o extremismo armado e conspiratório, com milícias e atentados como o de Oklahoma City (1995), realizado por Timothy McVeigh.

Essa onda transformou o Partido Republicano, consolidando alianças entre elite econômica, fundamentalismo religioso e ressentimento racial.

Quarta onda (2001–2020): Guerra ao Terror, internet e radicalização digital

Após o 11 de Setembro, os EUA mergulharam numa era de pânico e militarização. O governo Bush invadiu o Afeganistão e o Iraque e fortaleceu o aparato de vigilância e repressão.

Internamente, a extrema direita se alimentou do anti-islamismo, da xenofobia e da retórica de “choque de civilizações”. A tecnologia acelerou o extremismo: fóruns e redes sociais viraram centros de radicalização, com memes, fake news e teorias da conspiração.

Fenômenos como Gamergate, alt-right, QAnon e a cultura incel ganharam força. Algoritmos de redes sociais impulsionavam conteúdos extremistas.

Trump representou o ápice político dessa onda. Seu governo promoveu políticas excludentes e normalizou a violência política. Ataques como os de Charleston, Pittsburgh, El Paso e a invasão do Capitólio mostraram a atuação paramilitar da extrema direita.

Quinta onda (2021–presente): globalização do extremismo, desinformação e populismo autoritário

Mesmo após a derrota de Donald Trump nas eleições de 2020, o trumpismo permaneceu como força dominante nos Estados Unidos. A radicalização agora opera em escala global, inspirada por líderes como Jair Bolsonaro (Brasil), Viktor Orbán (Hungria) e Giorgia Meloni (Itália). Plataformas digitais continuam a ser o principal campo de batalha, com uso estratégico de estética pop e linguagem refinada para disseminar ódio.

A extrema direita tenta capturar o sistema por dentro: eleger juízes, promotores e conselheiros escolares, reescrevendo leis e currículos. Grupos armados e religiosos extremistas se articulam com influenciadores digitais e think tanks. A ameaça é real: mais do que protestar, querem construir um projeto autoritário duradouro.

Como parar essa maré 

Esta quinta onda da extrema direita revela que o fenômeno deixou de ser um desvio marginal da política moderna para se tornar um dos principais eixos de disputa global. Nos Estados Unidos, a ameaça não está apenas nas margens armadas, mas dentro das instituições — nas assembleias estaduais, nas cortes supremas, nos conselhos escolares. O trumpismo segue vivo, reorganizando a direita em torno de ressentimentos identitários, paranoia antissistêmica e moralismo autoritário.

No Brasil, os ecos dessa radicalização digital e institucional ainda reverberam após o governo de Jair Bolsonaro, que não só emulou estratégias de Trump como ajudou a internacionalizar a linguagem do ódio, o negacionismo científico e o ataque sistemático às instituições democráticas. A invasão aos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 ilustrou como as práticas do trumpismo encontraram terreno fértil em outras democracias fragilizadas pela crise capitalista.

Na Europa, o avanço de partidos ultranacionalistas — como o Fidesz de Viktor Orbán na Hungria, o Fratelli d’Italia de Giorgia Meloni na Itália, o Rassemblement National de Marine Le Pen na França e a Alternativa para a Alemanha (AfD), que cresce com força no leste alemão — mostra que o autoritarismo contemporâneo não veste mais fardas, mas ternos, slogans populistas e perfis polidos nas redes sociais. Essa nova extrema direita se alimenta de crises migratórias, insegurança econômica, desinformação e do esgotamento dos modelos liberais tradicionais.

Diante desse cenário, o desafio não é apenas enfrentar a violência explícita, mas também desmontar os discursos sofisticados que disfarçam autoritarismo de “liberdade” e supremacia de “valores tradicionais”. O combate à extrema direita exige uma defesa ativa da democracia, da justiça social e da pluralidade — com coragem política, regulação das plataformas digitais e reconstrução de vínculos sociais baseados em solidariedade, não em medo.

O mundo está diante de uma encruzilhada histórica. Aprender com as ondas anteriores é urgente. Impedir que a maré autoritária avance ainda mais é um dever coletivo.

Leituras recomendadas para entender a ascensão da extrema direita

Para quem deseja se aprofundar no tema e compreender melhor os caminhos históricos, ideológicos e sociais da extrema direita nos EUA e no mundo, seguem algumas sugestões de leitura com edições em português:

A Mente Reacionária – Corey Robin
Um panorama da tradição conservadora, da Revolução Francesa a Donald Trump, mostrando como o medo da perda de privilégios impulsiona a política reacionária.

A Extrema Direita Hoje – Cas Mudde
Obra de referência que explica como a nova direita radical ganhou força no século XXI, misturando nacionalismo, populismo e autoritarismo.

O Povo Contra a Democracia – Yascha Mounk
Análise clara sobre o enfraquecimento das democracias liberais e o avanço de líderes populistas autoritários ao redor do mundo.

Como as Democracias Morrem – Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
Best-seller que examina os sinais de degradação institucional a partir de exemplos históricos — inclusive os EUA sob Trump.

O Ódio Como Política: A Reinvenção das Direitas no Brasil – Organização de Esther Solano
Focado no Brasil, analisa como o discurso de ódio e o autoritarismo moldaram a nova direita nacional.

Documentários sugeridos:

O Dilema das Redes (Netflix) – sobre o papel das redes sociais na manipulação de emoções e na radicalização política.

Era Uma Vez Um Sonho Americano (Netflix) – mostra a decadência do “sonho americano” e os ressentimentos sociais explorados politicamente.

Privacidade Hackeada (Netflix) – sobre a Cambridge Analytica e o uso de dados pessoais para manipular eleições.

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