19 de outubro de 2025
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Máquinas podem pensar? Os 70 anos de história que levaram à inteligência artificial dos dias atuais

Ao fazer compras na internet, tiro dúvidas sobre o produto com um chat. Não sei identificar com certeza se quem responde é uma pessoa de verdade ou um robô.

Na sala de aula, professores discutem como garantir que o conteúdo produzido por seus alunos foi de fato escrito por eles, não por chatbots.

Até mesmo ao procurar emprego não está garantido que o recrutador será uma pessoa ou uma inteligência artificial (e se o currículo apresentado foi feito pelo candidato ou, igualmente, por uma IA).

Está cada vez mais difícil detectar o que é ou não feito por um humano.

Essa questão, vivida em escala massiva pela primeira vez na história, já tinha sido antecipada há mais de 70 anos, quando Alan Turing publicou o artigo “Computing Machinery and Intelligence”, em 1950. Ele começa com uma pergunta simples e perturbadora: as máquinas podem pensar?

Como foi que chegamos a esse ponto, em que ilusões de inteligência desafiam nossa noção do que é humano?

A resposta envolve algumas décadas de história da ciência, controvérsias e duelos entre diferentes visões do campo.

Para fazer esse resgate, a BBC News Brasil consultou artigos científicos, livros e entrevistou pesquisadores de IA e professores.

Máquinas podem pensar?

Uma estátua de Alan Turing no Sackville Park, na Gay Village de Manchester, em 1º de fevereiro de 2017, em Manchester, Inglaterra.
Turing foi um pioneiro cientista da computação e matemático inglês cujo trabalho inovador é considerado responsável por ter encerrado a Segunda Guerra Mundial antes do previsto. Ele foi condenado à castração química após admitir ter cometido “atos de indecência grave” em 1952. Foi encontrado morto por envenenamento por cianeto em 1954. Uma investigação concluiu que se tratava de suicídio.

O cientista britânico Alan Turing (1912-1954) é tido como um dos precursores da inteligência artificial — isso em um momento em que, vale lembrar, o termo sequer tinha sido criado. A expressão só se tornaria conhecida mais tarde, em 1956, com o cientista da computação John McCarthy (1927-2011).

Ainda assim, as ideias do autor teriam grande influência sobre o campo por décadas.

Foi nesse artigo que Turing apresentou o

experimento que mais tarde seria chamado de Teste de Turing. Ele descreve primeiro uma versão do que chamou de “Jogo da Imitação”: três participantes — um homem, uma mulher e um interrogador, que pode ser de qualquer gênero.

O interrogador fica em um cômodo separado e só pode se comunicar por meio de mensagens escritas. Seu objetivo é descobrir quem é o homem e quem é a mulher. Os dois participantes tentam convencê-lo, um dizendo a verdade e o outro tentando enganar.

Turing propôs uma variação: substituir um dos dois participantes por uma máquina. Se, após a interação, o interrogador não conseguir distinguir o humano do computador, então se poderia dizer que a máquina “pensa”.

Em 1951, Turing deu uma palestra na BBC sobre o tema, parte de uma série de falas sobre a ciência emergente da computação, que contou com outros pioneiros da época.

Não existe gravação da transmissão de Turing, mas o roteiro original, com suas anotações e marcações manuscritas, permanece no Arquivo Escrito da BBC.

O autor faz uma previsão no artigo: de que, em 50 anos (ou seja, por volta dos anos 2000), computadores teriam capacidade para armazenar muito mais palavras, a ponto de que interrogadores não teriam mais de 70% de chance de acertar o teste após cinco minutos de perguntas.

Ele também anteciparia o conceito de aprendizado de máquina, ao dizer que, ao invés de programar tudo de uma vez, sistemas deveriam ser criados para aprender com os dados.

“Se esse (programa) fosse então submetido a um curso de educação apropriado, obter-se-ia o cérebro adulto. Presumivelmente, o cérebro da criança é algo como um caderno que se compra na papelaria: pouco mecanismo e muitas folhas em branco.”

“Ele faz algumas previsões. E a conclusão do artigo dele descreve o que foi o desenvolvimento da IA hoje”, diz o professor de História e doutor em História Social pela USP Victor Sobreira.

A criação do prêmio Turing, conhecido como Nobel da computação, ajudaria ainda mais a consolidá-lo como referência, destaca Sobreira.

Mas a ideia de automatizar tarefas humanas é bem anterior a Turing.

“Já na mitologia grega havia o deus que criou um autômato, Talos, para proteger a ilha de Creta. Aristóteles, na obra Política, também discutia a possibilidade de seres automáticos ajudarem no trabalho e acabarem com o debate sobre mestres e escravos”, conta Anderson Rocha, professor titular do Instituto de Computação da Unicamp.

Mas se o termo “inteligência artificial” não é citado no artigo de Turing, onde ele surgiu, afinal?

O computador Apple 1 sobre uma mesa, ao lado de uma foto de Steve Jobs e Steve Wozniak
Uma réplica funcional do computador Apple 1 original, em exibição no Museu da Apple em 16 de março de 2023, em Varsóvia, Polônia.

Jogada de marketing?

Karen Hao, jornalista e autora do livro Empire of AI (veja entrevista da BBC em vídeo com a autora), lembra que o termo “inteligência artificial” surgiu em 1956, durante um encontro no Dartmouth College que reuniu cerca de vinte cientistas — “todos homens brancos”, em suas palavras — vindos da matemática, da criptografia e das ciências cognitivas.

John McCarthy, professor que organizou o evento, inicialmente chamava o campo de automata studies, o estudo de máquinas de comportamento automático.

Mas o nome não atraía atenção. Ao buscar uma expressão mais chamativa, cunhou “artificial intelligence”. A escolha foi, segundo a autora, uma estratégia de marketing: “inteligência” soava sofisticada, desejável e benéfica, capaz de mobilizar financiamento e despertar ambição científica.

A troca funcionou — o novo termo deu identidade a uma disciplina nascente e passou a atrair recursos e prestígio.

“Dartmouth acabou virando um mito fundador, mas na prática foi um encontro de dois meses sem tanto avanço concreto”, diz o professor Victor Sobreira.

“Mas estavam ali os que depois se tornaram grandes nomes da área nos EUA, fundadores de centros como o do MIT e Stanford, que definiram a pesquisa na área por décadas”, disse ele, destacando os nomes de John McCarthy e Marvin Minsky.

“Ali já nasce um pouco dessa questão do hype associado à IA”, diz Anderson Rocha, da Unicamp.

Alguns pesquisadores criticam essa visão de “mito de origem” da IA, por fazer parecer que a ideia teria nascido de um único projeto acadêmico conduzido por matemáticos e cientistas da computação.

Um artigo publicado em 2023 na revista BJHS Themes, por exemplo, aponta que as bases da IA também se relacionam a outras trajetórias históricas, como a industrialização, o militarismo e o colonialismo.

Esses vínculos aparecem, segundo os autores, na dependência de minerais extraídos em condições precárias em países africanos e na reprodução de lógicas coloniais de classificação de pessoas e territórios, por exemplo.

Mas como definir exatamente o que é inteligência? Como reproduzi-la em um computador?

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