Como um professor de escola pública e uma parlamentar negra criaram o Dia do Professor há quase 80 anos
Na sala dos professores do Ginásio Caetano de Campos, conhecido como Caetaninho, uma escola pública que funcionava na Rua Augusta, uma questão angustiava: era preciso buscar uma solução para aliviar o calendário letivo no segundo semestre, então carente de pausas para o descanso.
Foi quando o piracicabano Salomão Becker (1922-2006) teve uma ideia. Ele se lembrou que em sua cidade-natal havia a tradição de um dia em que os alunos levavam doces e salgadinhos para se confraternizar com os professores. Juntou alhos com bugalhos e propôs uma pausa nas atividades escolares para que fosse celebrado o Dia do Professor — que hoje é celebrado no Brasil todo dia 15 de outubro.
A escolha da data não poderia ser mais conveniente: mais ou menos no meio do segundo semestre escolar, coincidindo com o dia da primeira legislação brasileira a instituir oficialmente a educação pública primária em todo o território nacional, a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada pelo imperador d. Pedro 1º (1798-1834).
Em 1947, portanto, o Caetaninho passou a ter o Dia dos Professores. E a ideia logo foi se espalhando por outros colégios. Tanto que, no ano seguinte, se tornou lei paulista.
“A iniciativa de Salomão Becker é a gênese afetiva e comunitária da data”, comenta à BBC News Brasil o publicitário Rinaldo Allara Filho, pesquisador da área de educação e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Ele percebeu o esgotamento físico e mental dos colegas ao final de um longo período letivo e teve uma ideia simples, porém profundamente humana: organizar um dia de folga e confraternização.”
“O objetivo dele não era criar um feriado nacional, mas sim um momento de pausa e reflexão”, explica Allara. “Era uma oportunidade para os professores se reunirem, trocarem experiências sobre os desafios da profissão, analisarem os problemas em comum e, principalmente, descansarem e se sentirem valorizados por seus pares. A iniciativa nasceu ‘de baixo para cima’, a partir da vivência real da sala de aula. Era sobre congraçamento, sobre criar uma comunidade de apoio mútuo em um ofício que pode ser muito solitário.”
Questão constante na história brasileira, a busca pela valorização do trabalho do professor era uma preocupação naqueles anos 1940. Tanto que, naquela mesma época, a professora catarinense Antonieta de Barros (1901-1952), então deputada estadual, criou uma lei instituindo o Dia do Professor como feriado escolar em Santa Catarina.
Barros entraria para a história como a primeira mulher negra a ser eleita para um cargo público no Brasil, tornando-se um ícone de pioneirismo tanto para o movimento negro quanto para a causa feminista.
“O professor Becker não estava só em sua iniciativa. Outros personagens se destacaram com essa ideia [de valorizar o magistério]. Por coincidência ou não, a professora Antonieta de Barros trabalhou nesse mesmo sentido, de valorizar a figura do professor mediante o estabelecimento da efeméride”, afirma à BBC News Brasil o educador Italo Francisco Curcio, consultor da Fundação Eduardo Carlos Pereira. “E ela o fez, por meio de uma lei estadual.”
Allara pontua que embora não haja evidências de conexão direta ou colaboração entre Becker e Barros, é preciso ressaltar o “espírito do tempo” do Brasil daquela época.

“O país vivia um período de redemocratização após o Estado Novo, e havia um debate nacional intenso sobre os rumos da nação e o papel da educação nesse processo de reconstrução. A necessidade de valorizar o magistério era uma pauta latente na sociedade”, diz o professor.
“Particularmente penso que, as duas iniciativas, embora independentes, podem ser vistas como duas manifestações distintas, porém
complementares, dessa mesma necessidade, uma nascida da prática e da solidariedade de classe em São Paulo, e outra, da visão política e do compromisso social em Santa Catarina.”
Allara observa que há uma complementaridade entre as duas iniciativas.
“Mostra que a luta pela valorização não é uma abstração, mas foi liderada por pessoas reais, com motivações concretas. Becker nos lembra da importância do cuidado mútuo e da saúde mental docente. Antonieta nos inspira com sua resiliência e visão política”, afirma.
Fato é que a proposta pegou em todo o país. Em outubro de 1963, o então presidente João Goulart (1919-1976) publicou um decreto instituindo o feriado escolar do Dia do Professor no território nacional.

História, geografia e direito
Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Becker foi professor de história e geografia em diversas escolas públicas e privadas ao longo de 49 anos. Ele era filho de imigrantes que trocaram a Moldávia pelo Brasil no início dos anos 1910 e deficiente físico — tinha paralisia total no braço direito, desde o nascimento.
Na juventude, Becker teve uma breve passagem pelo jornalismo, como repórter do jornal Folha da Tarde. Encontrou-se mesmo no magistério. Tanto que, já aposentado, decidiu cursar Direito e, tão logo se diplomou, acabou se tornando professor de direito internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Curcio reconhece que há poucas informações biográficas que detalhem a trajetória de Becker mas que, “bastou essa iniciativa”, a da criação da data comemorativa, “para mencionar-se sua notoriedade”.
“Entendo que ele estava imbuído do mesmo princípio que o meu: o da necessidade de se destacar uma data para homenagear um personagem marcante em nossa vida, o professor, a professora”, comenta o educador.
“Com seus quase 50 anos de docência, os registros históricos disponíveis acerca de sua biografia são parcos e não nos possibilitam destacar eventuais outras grandes marcas, que possam ter sido vivenciadas. Mas, mesmo assim, sabe-se de seu brilhantismo e dedicação singular na sua vida de professor”, avalia Curcio.
Para o educador, Becker almejava “muito mais do que a efeméride”. “Ele queria festejar e promover um dia de destaque do professor”, salienta.
Pioneira
Antonieta de Barros é uma figura que vem sendo resgatada do apagamento nos últimos anos — em 2023 teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Filha de uma lavadeira, ex-escravizada, com um homem sobre o qual há poucas informações, teve uma infância pobre e difícil em Florianópolis.