Companheiros, camaradas e pariceiros: três formas de resistência ao cinismo neoliberal
Prof. Xico
Em tempos de vínculos frágeis, afetos precarizados e política convertida em espetáculo, as palavras que escolhemos para nos dirigir uns aos outros carregam mais do que gentileza, carregam sonhos, cumplicidades e esperanças. Entre a rigidez estratégica do camarada, o calor solidário do companheiro e a malemolência confiável do pariceiro, não se revela apenas uma variação de vocabulário, mas um verdadeiro campo de disputa sobre os modos possíveis de viver juntos. São expressões de linguagem, visões de mundo, maneiras de olhar o outro como parceiro da mesma caminhada.
Essas três figuras — camarada, companheiro e pariceiro — representam, cada uma à sua maneira, práticas de convivência forjadas em diferentes tradições sociais, políticas e afetivas. São formas de estar junto, de construir comunidade, de resistir ao individualismo corrosivo do neoliberalismo, mantendo viva a aposta nos belos sonhos que alimentam o bom viver e forjam as mais luminosas jornadas da história das humanidades, das populações que deram sentido aos lugares e às suas próprias existências. Através dessas figuras, reencontramos a força da solidariedade.
Camarada: a confiança forjada na luta
A figura do camarada nasce no seio das lutas revolucionárias, especialmente na tradição dos partidos comunistas. É um termo de trincheira, de célula partidária, de clandestinidade. Não se trata de afinidade pessoal nem de coincidência ideológica casual. O camarada é aquele que compartilha um mesmo projeto estratégico e uma disciplina comum. O vínculo não nasce do afeto, mas o atravessa, pois é um afeto endurecido, disciplinado, provado no campo de batalha. No caso, na luta por uma sociedade socialista, como contraponto à exploração e à expropriação do capital.
Nas palavras de Gramsci, o camarada não é apenas um aliado. É mais do que isto; é quem compartilha com o outro o peso da história nos ombros. A camaradagem é o cimento invisível de toda estrutura revolucionária consequente. Mas não se engane. Por trás da rigidez, há ternura. A confiança entre camaradas se mede pelo exercício da crítica e da autocrítica, pelo estudo e pela paixão. Como teria dito Che, na célebre frase atribuída a ele, “endurecer sem jamais perder a ternura”. O próprio Che Guevara, desde a América Latina, tornou-se símbolo desse camarada duro e terno.
Companheiro: a ética do cuidado político
Já o companheiro, consagrado na tradição sindical e na militância petista, carrega consigo o pão partilhado, a escuta atenta, os sonhos comuns. Se o camarada é chamado à revolução, o companheiro é convidado a conhecer, conviver, lutar. O companheirismo é a forma política do cuidado, do ombro amigo, da escuta sem pressa, da mão estendida. É a certeza de caminhar junto, movido por uma causa comum. Essa busca, por exemplo, ombreou, no PT, socialistas, cristãos e povos de terreiro; mulheres, juventudes, negros e negras, LGTBQIA+, sindicalistas e indígenas e tantas outras pessoas e suas lutas.
É uma figura que une o engajamento político à afetividade ética. Na prática dos movimentos populares, das pastorais e das organizações de base, o companheiro é aquele que constrói, com paciência, o comum. Não se exige dele a ortodoxia do camarada, mas sim constância, solidariedade e respeito às diferenças. A política do companheirismo é a política da presença sensível, de quem se reconhece parte de uma história e, ao mesmo tempo, de um sonho. Ou melhor, do encontro entre diferentes histórias e lutas que precisam ser tecidas numa única tapeçaria, feita de muitos fios.
Pariceiro: a poética do cotidiano
E eis que surge, da convivência cotidiana, o mais brasileiro dos vínculos: o pariceiro. Mais que um parceiro, o pariceiro é figura original do nosso conviver. Está no banco da praça, no puxadinho da feira, no botequim da esquina, no jogo de dama da rua, na pelada no campinho. É relação que dispensa partido, mas não dispensa lealdade. O pariceiro é aquele que ajuda a empurrar o carro, que empresta a escada, que aparece sem ser chamado e acerta sem avisar; que empresta uma grana e até esquece a quem. E que, nos tempos de fartura ou penúria, deixa a porta sempre aberta.
No pariceirismo reside uma política subterrânea, silenciosa, mas fundamental: a política do favor convertido em cuidado, da reciprocidade improvisada, da confiança tecida no tempo miúdo. Não exige disciplina nem coerência ideológica, pois basta o olho no olho, o “conte comigo” sem papel. Só no olhar, fulano já sabe do que beltrano precisa. É a expressão mais desarmada do bom viver. E talvez, por isso mesmo, radical. O pariceirismo é a expressão da amizade que atravessa o tempo, se reconstrói nas narrativas e sobrevive às turbulências, aos desastres e às alegrias.
Três formas de resistência ao cinismo neoliberal
Camaradas, companheiros e pariceiros não são apenas formas de nomear o outro. São práticas, são resistências vivas diante de uma ordem neoliberal que valoriza o indivíduo performático e calculista, o empreendedor de si mesmo, os vínculos utilitários e o desamparo institucionalizado. Essas formas de estar junto sustentam outra política; aquela que não separa afeto de estratégia, que não renuncia à solidariedade, que não se envergonha do amor partilhado. Essas três figuras se completam. A camaradagem sustenta a luta; o companheirismo, a caminhada; o pariceirismo, a vida.
E todas elas compõem nossa busca cada vez mais urgente para superar a exploração e a expropriação dos seres vivos, valorizar as relações comunitárias e reencontrar a harmonia com a natureza. Recuperar esses vínculos e reconhecê-los em sua plenitude é apostar na reconstrução sensível da política. É lembrar que nenhuma revolução se faz sem confiança, sem cuidado, sem afeto. E que os grandes sonhos, por mais utópicos, se alimentam de pequenos gestos, como o pão dividido e a palavra partilhada, e se materializam nas jornadas rumo à terra sem males, ao bem viver, ao socialismo.