Lula X Trump: Itamaraty divulga discurso do Brasil na OMC; líder da UE fala em expulsão dos EUA
Revista Fórum – Governo Lula ganhou a adesão de 40 países ao expor “uso de medidas comerciais unilaterais como instrumento de interferência nos assuntos internos de outros países” por Trump. Líder da UE confirma que “Trump telefona para amigos”.
O Ministério de Relações Exteriores do Brasil divulgou nota na noite desta quarta-feira (23) sobre a proposta do governo Lula na Organização Mundial do Comércio (OMC), que ganhou a adesão de 40 países, para enfrentar a guerra tarifária desencadeada pelo presidente dos EUA, Donald Trump.
“Em sua intervenção, o Brasil reiterou a necessidade de defesa contínua do sistema multilateral de comércio e condenou o recurso a tarifas arbitrárias que violam os princípios fundamentais da OMC e ameaçam a economia mundial. Em particular, a delegação brasileira registrou profunda preocupação com o uso de medidas comerciais unilaterais como instrumento de interferência nos assuntos internos de outros países”, diz a nota do Itamaraty, em referência ao achaque de Trump contra o Brasil, pedindo o fim do julgamento contra Jair Bolsonaro (PL) para suspender a tarifa de 50% sobre produtos do país, que passa a valer a partir de 1º de agosto.
O ministério ainda divulgou a íntegra do forte discurso em que o secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, embaixador Philip Fox-Drummond Gough, alerta que “negociações baseadas na lógica do poder são um atalho perigoso rumo à instabilidade e à guerra”.
“Como afirmou o Presidente Lula em artigo recente: ‘É urgente insistir na diplomacia e refundar as estruturas de um verdadeiro multilateralismo, capaz de atender aos clamores de uma humanidade que teme pelo seu futuro. Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta”, disse ainda o embaixador brasileiro – leia a íntegra ao final da reportagem.
Além de China, Rússia, África do Sul e outros sete países que são parte dos Brics, o governo brasileiro ganhou apoio de peso de nações como Canadá, principal parceiro comercial dos EUA, e da União Europeia, que também mantém forte relação com o país da América do Norte.
Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o Estadão, nesta quinta-feira (24), o presidente da Comissão de Comércio Internacional (Inta, na sigla em inglês) do Parlamento Europeu, Bernd Lange, se coloca ao lado do Brasil e afirma que os EUA, que acumulam dívidas com a organização, podem ser expulsos da OMC.
“Há algumas discussões agora acontecendo se devemos expulsar os EUA da OMC. Não tenho certeza se será legalmente possível, mas agora eles bloquearam, no último mês, pela 86ª vez a indicação para o mecanismo de apelações. E, então, ele continua sem juízes. Além disso, não pagam há cerca de dois anos o dinheiro que deviam dar para a OMC. Temos 165 países no órgão e devemos construir em cima disso”.
Lange ainda se alinhou à proposta de Lula, de “reformar a OMC” e “criar uma rede de parceiros confiáveis, e sermos um elemento de estabilização e dar previsibilidade para investimentos”. E citou o Brasil como exemplo dos achaques comerciais de Trump que têm como pano de fundo questões políticas internas dos países.
“Espero que consigamos ter uma frente comum contra a política ilegal e injustificável do presidente Trump. O Brasil, especificamente, está sendo atacado neste momento. Trump está usando as tarifas não como uma medida econômica, mas como arma de pressão política. Há esta nova investigação, por meio da seção 301, dos EUA contra o Brasil, sobre regulação digital e com outros elementos, em que está claro que é um uso coercitivo das tarifas”, disse.
Guerra comercial com fundo político
O líder europeu ainda diz que não há negociação com o governo dos EUA pois Trump é quem toma as decisões – as cartas comunicando as taxações, que o presidente dos EUA chama de acordos – e toma decisões, muitas vezes, ligando para “amigos”, ressaltando o caráter política em prol da ultradireita neofascista da guerra comercial contra o mundo.
“A grande diferença para o primeiro mandato do Trump é essa. Era possível realmente conversar com o secretário de Comércio e outras autoridades de comércio e achar soluções, de uma forma normal. Isso acabou totalmente agora. Temos uma cesta em que tudo está dentro, e ninguém sabe exatamente qual será a decisão do presidente. Ele também tem como consultor para as tarifas o (economista) Peter Navarro, mas ele é inacreditável. Às vezes, Trump telefona para alguns amigos e pergunta para eles o que pensam sobre certa coisa, e isso é a base para a decisão”, conclui Lange.
Peter Navarro, que chegou a ser preso por não cooperar com a investigação do Congresso sobre a invasão de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, é considerado o “czar do tarifaço de Trump” e é chamado presidente dos EUA como “meu Peter”.
Ele foi protagonista da briga com o bilionário Elon Musk, que deixou o governo Trump por pressão do guru econômico de Trump.
É dele a ideia estapafúrdia de que a guerra comercial resultará na reindustrialização dos EUA, com fábricas de transnacionais estadunidenses voltando ao país.
“Chegaremos a um ponto em que os EUA vão voltar a fabricar coisas novamente, os salários reais vão subir, e os lucros vão aumentar”, disse Navarro em uma entrevista à rede CNBC.
É dele também a ideia de colocar a China como a principal inimiga dos EUA no cenário internacional. Navarro escreveu três livros sobre a potência asiática e seu poder econômico: The Coming China Wars (“As Próximas Guerras da China”, em tradução livre), Death by China (“Morte pela China”, em tradução livre) e Crouching Tiger: What China’s Militarism Means for the World (“Tigre de prontidão: O que a ascensão militar da China significa para o mundo”).
Leia a íntegra do discurso do secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, embaixador Philip Fox-Drummond Gough na OMC
Senhor Presidente, Senhora Diretora-Geral, Prezados colegas,
– O Brasil sempre foi um apoiador firme e engajado do Sistema Multilateral de Comércio.
– Oito décadas se passaram desde a criação das Nações Unidas e da construção do sistema GATT/OMC e, neste ano, a OMC celebra seu 30º aniversário.
– Infelizmente, neste exato momento, estamos testemunhando um ataque sem precedentes ao sistema multilateral de comércio e à credibilidade da OMC.
– Tarifas arbitrárias, anunciadas e implementadas de forma caótica, estão desorganizando as cadeias globais de valor e ameaçam lançar a economia mundial em uma espiral de preços elevados e estagnação.
– Tais medidas unilaterais representam uma violação flagrante dos princípios centrais que sustentam a OMC e que são essenciais para o funcionamento do comércio internacional.
– Essas medidas levantam questões fundamentais sobre o princípio da não discriminação e o tratamento de nação mais favorecida, e ameaçam comprometer a coerência jurídica e a previsibilidade do sistema multilateral de comércio.
– Elas também desequilibram as condições de acesso a mercados negociadas no âmbito do GATT e da OMC ao longo de décadas.
– Junto às ações deliberadas que resultaram na paralisação do sistema de solução de controvérsias da OMC, essas medidas ameaçam permitir que o comércio global volte a ser regido pela lógica da força, criando desequilíbrios particularmente prejudiciais aos países em desenvolvimento.
– Para além das violações generalizadas das regras do comércio internacional – e ainda mais preocupante –, estamos agora testemunhando uma mudança extremamente perigosa: o uso de tarifas como instrumento de tentativa de interferência nos assuntos internos de terceiros países.
– Como uma democracia estável, o Brasil tem profundamente arraigados, em sua sociedade, princípios como o Estado de Direito, a separação dos poderes, o respeito às normas internacionais e a crença na solução pacífica de controvérsias.
– Continuaremos a priorizar soluções negociadas e a confiar nas boas relações diplomáticas e comerciais. Caso as negociações falhem, recorreremos a todos os meios legais disponíveis para defender nossa economia e nosso povo – e isso inclui o sistema de solução de controvérsias da OMC.
Senhor Presidente, Senhora Diretora-Geral,
– Neste momento de grave instabilidade, é imperativo que todos trabalhemos juntos em defesa de um sistema multilateral de comércio baseado em regras.
– É essencial que a OMC recupere seu papel como espaço onde todos os países possam resolver controvérsias e defender interesses legítimos por meio do diálogo e da negociação.
– Como afirmou o Presidente Lula em artigo recente: “É urgente insistir na diplomacia e refundar as estruturas de um verdadeiro multilateralismo, capaz de atender aos clamores de uma humanidade que teme pelo seu futuro. Apenas assim deixaremos de assistir, passivos, ao aumento da desigualdade, à insensatez das guerras e à própria destruição de nosso planeta”
– O fracasso em encontrar um caminho que nos leve adiante apenas alimentará uma espiral negativa de medidas e contramedidas que nos tornará mais pobres e nos afastará da prosperidade e dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
– O Brasil está pronto para começar a trabalhar por uma reforma estrutural e abrangente da OMC. Precisamos ir além de atualizações incrementais, de modo a permitir que a Organização enfrente os desafios atuais.
– Todos devemos nos engajar nesses esforços. As maiores economias, que mais se beneficiaram do sistema de comércio, devem dar o exemplo e agir com firmeza contra a proliferação de medidas comerciais unilaterais. As economias em desenvolvimento, que são as mais vulneráveis a atos de coerção comercial, devem se unir em defesa do sistema multilateral de comércio baseado em regras.
– Negociações baseadas na lógica do poder são um atalho perigoso rumo à instabilidade e à guerra. Diante da ameaça de fragmentação, a defesa consistente do multilateralismo é o caminho a seguir.
– Ainda temos tempo para salvar o sistema multilateral de comércio. O Brasil continua pronto para discutir e cooperar nesse objetivo.
Obrigado.