Ditadura militar escravizou o povo Aikewara, no sudeste do Pará, durante a guerrilha do Araguaia
O antropólogo Orlando Calheiros, que desenvolveu trabalho junto a essa população, mostra que aldeia foi transformada em “campo de concentração” pelos agentes do regime.
Muitos crimes da ditadura civil-militar de 1964, especialmente aqueles cometidos contra militantes de partidos políticos de esquerda em grandes capitais, ainda carecem de esclarecimento. Imagine então o quão obscura é a história do período para os povos indígenas e camponeses do chamado “Brasil profundo”. Uma dessas histórias aconteceu em 1972, no âmbito da Guerrilha do Araguaia, e as vítimas foram os poucos indígenas do povo Aikewara – também conhecidos como Suruí do Pará – que viviam no sudeste do Pará próximos à divisa com o atual Estado do Tocantins – à época ainda acoplado a Goiás.
A história foi contada à Revista Fórum pelo antropólogo Orlando Calheiros, que trabalhou junto a esse povo a partir de 2009 e fala o seu idioma, que é de raiz tupi-guarani. O pesquisador explica que os Aikewara já haviam sido dizimados após o primeiro contato com a civilização brasileira e que seus remanescentes foram postos em cativeiro e escravizados pelos militares para que os ajudassem a rastrear os focos guerrilheiros na Floresta Amazônica.
“Esse é um episódio muito pouco conhecido da historiografia brasileira. Os Aikewara foram escravizados pelo Exército brasileiro, não tem outra palavra para descrever. O Exército brasileiro isolou a aldeia onde eles viviam, manteve mulheres, crianças e idosos presos dentro da aldeia e forçou os homens dessa população a trabalharem como batedores, como mateiros pra eles”, contou Calheiros.
À época do primeiro contato, alguns anos antes da guerrilha do Araguaia começar, a população Aikewara saiu de quase 1000 habitantes para cerca de 30. Entre as principais causas do morticínio estava uma epidemia de sarampo trazida junto com a expansão das fronteiras agrícolas. Mas nem após um quase extermínio completo os indígenas tiveram paz.
“Em 1972 os militares transformaram a aldeia num campo de concentração. Mulheres e crianças não podiam sair das malocas sem serem acompanhadas pelos militares. Eles eram impedidos de caçar, impedidos de plantar, tudo que eles comiam vinha do exército e a comida era fracionada. Então imagina, até parece que os militares iam ficar dividindo comida com eles. Têm casos de maus-tratos contínuos da população, tortura e outras práticas. Estamos falando de uma população que na época eram apenas umas 50 pessoas”, afirma.
Segundo a análise do pesquisador, a região se torna um foco guerrilheiro justamente por ser, à época, o limite da fronteira agrícola. Ao norte, não havia nada em termos de agropecuária. A Trans-Amazônica e a Belém-Brasília ainda não estavam concluídas e o acesso à região era muito difícil.
“Ali você tinha uns posseiros que estavam ao redor do Rio Araguaia. Os posseiros vão se consolidando ao redor dos rios e os Aikewara faziam pequenas trocas com eles. Posteriormente, com a chegada dos guerrilheiros, também vão fazer essas pequenas trocas comerciais com eles”, disse.
Essas “pequenas trocas”, como toda população regional fazia, consistiam no escambo de produtos. Os indígenas pegariam, por exemplo, sacas de arroz, em troca de pouco de inhame, carne de caça e coisas do tipo. Quando o Exército chega, diz Calheiros, boa parte dos Aikewara sequer falava português.
“Quando falava era muito pouco. Tanto que uma das primeiras palavras que os mais velhos souberam era ‘terrorista’. Foi uma das primeiras palavras em português que os Aikewara incorporaram no vocabulário. Agora imagina você sequestrar pessoas que você sequer entende a língua e obrigá-las a servir como mateiras. Os homens eles eram sujeitos aos mesmos maus tratos que os prisioneiros. Eles apanhavam, tinham que comer carne crua. A carne que eles comiam, sequer era uma carne assada. Muitos deles adoeceram de forma considerável durante essa ação”, conta o pesquisador.
Muitos carregaram toda a sua vida sequelas daquele momento. Foram feridos, mutilados, perderam a audição. Essa conversão da comunidade em campo de concentração durou meses. Depois de tudo isso, o Exército brasileiro ainda divulgou uma versão da história de que algumas das violações de direitos teriam sido justamente perpetradas pelos indígenas.
“Eles divulgaram na época a ideia de que os Aikewara cortaram cabeças dos militantes, dos guerrilheiros. Os militares divulgaram isso para a população ao redor, causando um estigma à comunidade. Era muito comum que o exército brasileiro, quando matava pessoas durante a guerrilha da Araguaia, cortasse a cabeça das pessoas, o dedo indicador e desovassem o restante do corpo. A cabeça e o dedo serviam pra identificar os mortos. E é muito ‘melhor’, em termos logísticos, você levar uma cabeça e um dedo do que levar um corpo inteiro, não? Então eles faziam isso. E quando essa prática foi descoberta, eles colocaram a culpa nos indígenas. Depois de todo esse processo, e durante muitas e muitas décadas, os Aikewara tiveram que lidar com o estigma de serem cortadores de cabeça. Imagina o que isso gerou pra eles na região”, finaliza o antropólogo.
Atualmente os Aikewara estão se recuperando do processo de escravização e extermínio provocados pelos militares e pela própria expansão da fronteira agrícola na região. A população está em torno de 600 pessoas e concentrada na Terra Indígena Sororó, cerca de 100 km ao sul de Marabá, no Pará. A área tem 26 mil hectares e dispõe de “floresta em pé”, ao contrário de todo o entorno que já virou pasto para o agronegócio. Ainda hoje convivem com pesadelos noturnos, alcoolismo e aguardam o reconhecimento da porção do seu território tradicional, terra excluída da demarcação que foi realizada ainda durante a Ditadura, em 1983.