Anistia não vale para ocultação de cadáver, diz Dino
TRF1 – O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), citou o filme “Ainda Estou Aqui” em decisão proferida nesse domingo (15) que abre a possibilidade de crimes de ocultação de cadáver ocorridos na época da ditadura militar não serem abarcados pela Lei da Anistia.
Dino é relator de recurso extraordinário com agravo impetrado pelo Ministério Público Federal no STF, que busca a condenação de Lício Maciel por crimes de homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a Guerrilha do Araguaia. Sebastião Curió, o Major Curió também foi denunciado por ocultação de cadáver, mas faleceu em 2022. Maciel e Curió foram militares do Exército.
A Lei da Anistia, de 1979, concedeu anistia a crimes políticos e outros relacionados cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 – período que abrange parte ditadura militar brasileira (1964-1985).
A decisão, tomada em um momento em que se discute a possibilidade de aprovação de nova lei para anistiar os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, busca formar jurisprudência na Corte se a Lei de Anistia se aplica a crimes cujo início da execução se deu no período de 1961 a 1979, mas que continua a se consumar até o presente. Ou seja, o debate desse recurso se limita a definir o alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver”. A matéria será avaliada em plenário virtual do Supremo.
“Manifesto-me no sentido de reconhecer o caráter constitucional e a repercussão geral do seguinte tema: Possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº. 6.683/79”, afirma Dino.
O ministro do STF defendeu a admissão do recurso e frisou que não se trata de reexame de provas ou de matéria infraconstitucional. “O debate do presente recurso se limita a definir o alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver”, informa Dino em sua decisão. “No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”, complementa.
O magistrado reforça que a anistia somente pode alcançar atos pretéritos. “Não há possibilidade de se anistiar ato futuro, o que significaria um ‘vale crime’, que é obviamente vedado pela Constituição. A Lei de Anistia teve sua validade referendada pelo STF e a presente decisão a aplica ao seu objeto: os crimes consumados anteriormente à sua entrada em vigência”, afirma.
Em sua decisão, Dino destacou também que “o crime de ocultação de cadáver tem, portanto, uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial” e mencionou o filme “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice).
“A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, diz o ministro.
De acordo com Dino, o crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. “A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática do crime, bem como situação de flagrante”.