14 de fevereiro de 2025
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Ao votar em Trump eleitores decidiram que o preço dos ovos importa mais que a invasão do Capitólio, diz autor de ‘Como as democracias morrem’

Há quatro anos, o cientista político americanoSteven Levitsky, da Universidade de Harvard, foi um dos primeiros a caracterizar a insurreição no Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro como uma “tentativa de autogolpe” de Donald Trump.

Autor do livro clássico da ciência política Como as democracias morrem, Levitsky diz à BBC News Brasil que o retorno ao poder de Trump, quatro anos depois e pela via eleitoral, deve levar os Estados Unidos a deixar de ser uma democracia e se converter no que ele chama de “um regime autoritário competitivo”, no qual as eleições seguem existindo, mas sem que as regras do jogo sejam devidamente cumpridas.

Levitsky, no entanto, recusa a ideia de que a maior parte dos cidadãos da mais longeva democracia moderna da história tenham decidido conscientemente por uma guinada autoritária.

Segundo ele, eleitores nas democracias latinas e europeias, assim como nos EUA, estão de mau humor com seus governos e votando contra o status quo. Para ele, em novembro passado, os eleitores americano decidiram que “o preço dos ovos importa mais do que a invasão do Capitólio”, optaram por mudança e votaram contra o governo.

Para o pesquisador, que a opção na cédula fosse Donald Trump é o resultado de falhas sucessivas, tanto da elite política quanto de todas as instituições e seus mecanismos de pesos e contra-pesos, dos quais os EUA costumavam se orgulhar. “Nunca fomos o modelo de democracia que fingíamos ser”, diz Levitsky.

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Levitsky espera ver um governo Trump com muito mais condições de executar políticas públicas do que o republicano fez no primeiro mandato e chama de “besta feroz” a coalizão do líder carismático com os bilionários donos das maiores redes sociais, em especial Elon Musk, dono do X.

“Não regulamentadas, redes sociais podem ser uma ameaça real à qualidade e estabilidade das democracias”, diz Levitsky.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Levitsky, concedida à BBC News Brasil via chamada de vídeo e editada por concisão e clareza:

BBC News Brasil – Você foi um dos primeiros pensadores a dizer que o 6 de janeiro foi uma tentativa de autogolpe de Trump. No momento em que o ataque ao Capitólio completa 4 anos, Trump está voltando para a Casa Branca, depois de vencer as eleições no voto popular e no colégio eleitoral. O que o atual

momento político dos EUA significa?

Steven Levitsky – É um mau sinal. Uma das coisas críticas ou mais importantes para preservar uma democracia ao longo do tempo é que, quando há tentativas de subverter as instituições democráticas, seja um golpe presidencial ou uma tentativa de roubar uma eleição ou violência política, esses atos contra a democracia devem ser denunciados com força e rejeitados por toda a elite política. Como ocorreu no Brasil em 2023, muito mais do que nos Estados Unidos em 2021.

Mas o fato de termos Donald Trump como presidente novamente, apesar de ele ter tentado muito abertamente derrubar uma eleição e bloquear uma transferência pacífica de poder, em primeiro lugar, é um sinal de que nossas instituições falharam.

Os nossos alardeados controles constitucionais de que os americanos tanto se orgulham falharam sistematicamente: o Congresso dos EUA não conseguiu destituir e condenar Trump, o que o teria impedido de concorrer em 2024; a justiça norte-americana não conseguiu responsabilizar Trump; e, então, o Partido Republicano, apesar de uma tentativa de golpe, o nomeou candidato novamente.

E não há sequer um consenso realmente alargado contra a insurreição de 6 de janeiro, apesar de a maioria dos americanos a rejeitar. Donald Trump e muitos dos seus apoiadores continuam abraçando essa insurreição. Esse é um sinal do que os cientistas políticos chamam de democracia não consolidada.

BBC News Brasil – Ao longo de décadas, os EUA tomaram todo tipo de medidas ao redor do mundo justificando a necessidade de implantar e defender a democracia. Em alguma medida foi o que vimos com a China, na Venezuela, em relação a Cuba, etc. O senhor, no entanto, avalia que o país está enfraquecendo a sua própria democracia com Trump. O que as escolhas do eleitorado americano neste momento revelam?

Levitsky – O que aconteceu [com a eleição de Trump] foi um fracasso das instituições e das elites. Nenhuma sociedade pode confiar nos eleitores para defender a democracia. E isso foi essencialmente o que os políticos nos EUA fizeram.

Com raras exceções, os eleitores não votam a favor da democracia ou contra a democracia ou qualquer tipo de regime. Os eleitores votam por muitas e muitas outras razões. Votam por causa do estado da economia, porque gostam ou não do presidente, porque têm lealdade a um determinado partido. Mas os eleitores não votam pela democracia, que é abstrata demais, nunca é a coisa mais importante na mente dos eleitores.

Portanto, o fato de a maioria ter votado em Donald Trump não significa que a maioria dos americanos estivesse escolhendo o autoritarismo. O que 49,8% dos americanos fizeram foi votar contra o status quo, contra um partido incumbente com o qual estavam descontentes por causa dos efeitos persistentes da pandemia de covid-19, por causa da inflação.

Os eleitores em todo o mundo, inclusive no Brasil, estão mal-humorados, estão muito descontentes com o status quo. Na Europa, na América do Norte, na América Latina, os eleitores têm votado consistentemente na oposição. E fizeram isso nos Estados Unidos, mas não estavam escolhendo conscientemente um autoritário.

Agora, em termos de atuação no exterior, sempre foi um pouco hipócrita para os Estados Unidos se promoverem como padrão da democracia – nunca fomos o modelo de democracia que fingíamos ser. Mas vai ser cada vez mais difícil, eu acho, para os Estados Unidos promoverem a democracia no exterior com qualquer autoridade, dado o quão ruim, quão disfuncional sua democracia se tornou e quão gravemente suas instituições falharam.

Agora, isso não significa que somos equivalentes à Venezuela. Os EUA ainda condenarão a fraude eleitoral na Venezuela, que é, aliás, a pior fraude eleitoral da história moderna no continente americano. Mas certamente não temos o tipo de autoridade que tínhamos na década de 1990, quando promovíamos tão ativamente a democracia no exterior. Esses dias acabaram.

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