Como é viver sob a lei de ferro do Comando Vermelho (que continua exatamente como antes da megaoperação policial no Rio)
Em 2020, nenhum morador do Complexo da Penha, na Zona Norte carioca, podia usar o uniforme do Chelsea, time de futebol da Inglaterra.
Naquela época, a Three, empresa de comunicação britânica, era o patrocinador máster da equipe. E as camisetas estampavam o número 3 bem grande. Mas o três é estritamente proibido nas favelas do Comando Vermelho (CV), por remeter ao Terceiro Comando Puro (TCP), seu maior rival na disputa por territórios no Rio.
Regras assim, impostas pela facção criada do Rio de Janeiro, regem a vida de milhões de pessoas que vivem nas comunidades controladas pelos traficantes do CV não apenas onde o grupo criminoso nasceu, mas também nos outros Estados para onde se expandiu em todo o país.
A lei do CV determina até como falar. Moradores de comunidades controladas pela facção no Rio contam que uma delas é que não se pode dizer “a gente” – para os membros do CV, só fala assim quem está do lado inimigo. Nas áreas do CV, é “nóis”. Se errar, leva uma bronca e a suspeita de ter relação com o TCP.
Nos últimos anos, o tráfico aprendeu com as milícias e expandiu seus negócios para além da venda de drogas. Passou a monopolizar o gás, a TV a cabo, a internet e o transporte.
Não existe outra opção aos moradores a não ser pagar R$ 130 por um botijão de gás nas áreas do CV no Rio – o preço gira em torno de R$ 90 onde o comércio não é controlado pelo crime. A internet varia de acordo com a velocidade contratada e vai de R$ 70 a R$ 130.
Quem não paga, dizem moradores ouvidos pela reportagem, é cobrado diretamente pelos traficantes. Um morador de uma favela da Zona Sul dominada pelo CV contou que um conhecido apanhou por não pagar o gás e foi expulso da comunidade.
A maioria dos moradores não paga por energia elétrica. Os carros de aplicativo não podem subir o morro – para fazer esse serviço, existem os mototáxis estacionados logo na entrada da favela. Ou as vans, autorizadas pelos traficantes, que lucram com elas.
Também não é permitido brigar – só quem briga ou resolve conflitos são os membros do CV. Em casos de violência doméstica, se houver provas de que o homem bateu na mulher, o “desenrolo” com os traficantes pode resultar em espancamento com pauladas e expulsão da favela, ou, em casos mais graves, em assassinato.
Roubos são proibidos – e os infratores, em geral, têm uma das mãos cortadas pelo CV. Se, ainda assim, alguém insistir, pode “parar no pneu” (ser jogado dentro de pneus e incinerado). Olhar para “mulher de bandido” também é grave, digno de agressões físicas ou morte.
Nos bailes funks, se alguém espirrar lança-perfume (uma droga inalante ilícita) em algum traficante, vai sofrer retaliações. Se esbarrar em um deles – ou quiser tirar satisfação caso esbarrem em você – pode levar algum “esculacho”.
Se insistir na confusão, o CV lança mão da tortura e agressões. A denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), resultado de investigações policiais e que baseou a operação nos complexos da Penha e do Alemão, tem imagens, por exemplo, de uma mulher dentro de um balde de gelo, com uma legenda acusando-a de ser “brigona” e “arrumar confusão no baile”. Outra foto mostra um homem no chão, aparentemente sendo agredido.
“A agressão física serve não apenas como castigo, mas também como um aviso visível a outros membros da comunidade, reforçando a autoridade do tráfico e a vulnerabilidade dos moradores”, explica a pesquisadora Julia Quirino, especialista em defesa e segurança, em seu livro Panóptico Criminal, no qual analisa como o CV governa as favelas sob seu domínio no Rio de Janeiro.
“Estas formas extremas de punição amplificam o clima de medo e submissão que o tráfico busca instaurar nas comunidades.”
As regras para as mulheres podem ser ainda mais restritivas. Casos extraconjugais, principalmente quando os “prejudicados” forem membros do CV, podem ser fatais.
“O fato de existir uma grande quantidade de armas dentro das favelas acrescenta uma violência a mais nas dinâmicas relacionadas às traições e ciúmes”, explica a socióloga e antropóloga Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Geni/UFF).
“Situações que normalmente culminariam com um divórcio podem terminar num feminicídio.”

Além disso, é proibido aos moradores manter relacionamentos com membros de outras facções ou com policiais.
Nas redes sociais, os moradores também precisam tomar cuidado com as postagens.
Em 2020, na favela da Rocinha, dominada pelo CV, após vazar um vídeo de John Wallace da Silva Viana, o Johny Bravo, chefe da favela, cercado por fuzis, metralhadoras e pistolas, os traficantes juraram de morte os responsáveis pela publicação.
“Quem gravou os cria no baile assinou contrato com a morte bglh [bagulho] não vai ficar assim, e será proibido gravar nos baile da rocinha, ASS: EQUIPE BRAVO”, escreveram em um perfil do Twitter, que hoje é o X.
Embora seja difícil controlar o uso dos celulares até mesmo para traficantes, os moradores sabem que não podem filmar ou fotografar a boca de fumo ou os carros que passam pela comunidade com homens armados.
Segundo Quirino, as barricadas, que impedem o trânsito livre dentro das favelas também servem para demarcar o território – ali, quem manda são os membros da facção. Cabe aos moradores respeitar as regras e andar sempre na linha.
Foram essas torturas e formas de “governança” do Comando Vermelho que embasaram a denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, , que culminou com a Operação Contenção em 28 de outubro.
Sob a justificativa de ser preciso conter a expansão da facção, mais de 2,5 mil policiais militares e civis cercaram e entraram nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio. Ao todo, 121 pessoas morreram, entre elas quatro policiais. Foi a operação policial mais letal da história do Brasil.
Organizações de direitos humanos dizem que foi uma chacina. O governador do Rio, Cláudio Castro (PL) negou, disse que a ação foi um sucesso e planeja fazer novas operações depois que as pesquisas de opinião mostraram um apoio popular expressivo.
Em uma audiência no Senado na quarta-feira (5/11), o subsecretário de inteligência da Polícia Militar do Rio, Daniel Ferreira, disse que a operação teve impacto “ínfimo” para desarticular o CV.
Moradores também relatam que não houve mudanças na rotina do tráfico após a megaoperação. No dia seguinte às mortes, quando os corpos ainda eram retirados da mata, havia traficantes armados com fuzis na comunidade.
Isso não acontece só nos complexos da Penha ou do Alemão. Em outras áreas dominadas pelo CV, relatos à reportagem dão conta de que os criminosos se armaram ainda mais – e, agora, carregam até artefatos explosivos na cintura, caso a polícia apareça por lá.
