4 tentativas de golpes de Estado fracassadas que marcaram a história do Brasil
O último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL) e os primeiros dias de 2023, que culminaram no ataque de seus apoiadores a Brasília em 8 de janeiro, no início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estão sendo tratados pela Polícia Federal (PF) e por diversos especialistas como uma tentativa de golpe de Estado no Brasil.
Já em julho de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro colocava em questão a lisura das eleições e conclamava seu ministros a “fazer alguma coisa antes” do resultado das urnas, que já estaria “pintado”.
Nos sete meses seguintes, e principalmente após a derrota de Bolsonaro para Lula na eleição, houve acampamentos em frente a quartéis pedindo intervenção militar, bloqueios de estradas e tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília.
Segundo investigações da PF reveladas em novembro, alguns militares teriam tramado, no final de 2022, um plano para assassinar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
No último sábado (14/12), o general Walter Souza Braga Netto, candidato a vice na chapa de Bolsonaro em 2022 e ministro da Casa Civil e da Defesa do ex-presidente, foi preso preventivamente em meio a investigações sobre a suposta tentativa de golpe. Segundo a PF, Braga Netto estaria tentando interferir nas apurações em curso, o que sua defesa negou.
No fim de novembro, a PF tinha apontado Bolsonaro como líder da “organização criminosa” que planejou o golpe de Estado para mantê-lo no poder após a derrota nas eleições de 2022.
Bolsonaro negou sua participação em qualquer plano golpista e disse que “ninguém vai dar golpe com general da reserva e mais meia dúzia de oficiais. É um absurdo o que estão falando”.
De fato, a história do país tem bons exemplos de tentativas de golpe fracassadas – muitas delas com pouca adesão de setores das Forças Armadas.
As investigações recentes trazem à tona semelhanças com esses episódios.
Neles, aparecem recorrentemente fatores como falta de articulação, resistência de instituições e doses de incompetência.
Para David Maciel, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), as evidências que têm surgido das investigações que apontam para uma tentativa de golpe entre 2022 e 2023 indicam alguns ineditismos, em comparação com outros episódios históricos.
“Nenhuma tentativa frustrada de golpe se
caracterizou como um autogolpe, ou seja, quando o próprio governo de plantão busca se perpetuar ao romper com a legalidade vigente”, diz Maciel, autor do livro A Argamassa da Ordem – Da Ditadura Militar à Nova República.
O autogolpe mais famoso — e neste caso, bem-sucedido — da história do Brasil aconteceu em 1937, quando Getúlio Vargas proclamou o Estado Novo. Ele chegara ao poder por meio da Revolução de 1930 e fora eleito em 1934. Três anos depois, liderou o golpe e virou ditador.
Para Rodrigo Patto Sá Motta, coordenador do Laboratório de História do Tempo Presente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os acontecimentos recentes lembram outro momento da história.
“Guardadas as devidas proporções, essa mistura de marcha com protesto e atitudes de vandalismo lembrou a Marcha sobre Roma [evento em que os fascistas tomaram o poder na Itália, em 1922].”
Autor de Passados Presentes: O Golpe de 1964 e de outros livros sobre o período, o historiador vê características em comum entre os fatos recentes e eventos passados — em especial, o envolvimento de militares de alta patente e de políticos poderosos.
“Mais importante do que buscar comparações na história é chamar atenção sobre a gravidade desse episódio e a necessidade de que ele seja devidamente julgado, para que não ocorra novamente”, defende, acrescentando que o momento atual pode trazer uma “virada na história da relação dos militares com a política do Brasil”.
“Há 135 anos, eles têm se imaginado como figuras-chave da nossa política, como atores estratégicos. Fizeram isso alegando que tinham direito, porque eram muito bem preparados. É o momento de superarmos essa retórica.”
Sá Motta argumenta que o governo Bolsonaro demonstrou que esse suposto preparo acima da média não é realidade.
“Os militares mostraram sua incompetência ao gerir o país, cometeram vários equívocos, inclusive criminosos, no caso da pandemia, e ainda assim queriam permanecer no poder à força. Julgamento e punição são essenciais, até porque eles nunca foram punidos, especialmente os de alta patente.”
O historiador lembra que houve vários momentos da história brasileira em que militares tentaram ou conseguiram dar um golpe de Estado — conheça quatro dos mais emblemáticos no último século.
Levante Integralista (1938)
Em 1937, durante o governo Getúlio Vargas, a Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento político ultranacionalista e de inspiração fascista, abraçou com entusiasmo o golpe que decretou o Estado Novo.
A participação e o apoio prestados, além das movimentações do próprio Vargas, levaram os integralistas a pensar que teriam papel importante na nova conjuntura do governo.
Eles estavam empolgados. Seu líder, Plínio Salgado, já se sentia ministro da Educação, segundo a historiadora Marly de Almeida Gomes Vianna em um artigo apresentado no Simpósio Nacional de História.
Em 1º de novembro de 1937, dias antes do golpe, milhares de integralistas fizeram uma parada em estilo militar no Rio de Janeiro, então capital federal, para saudar Vargas.
Mas um decreto-lei ainda naquele ano frustrou os sonhos do grupo ao extinguir todas as agremiações políticas no país — incluindo a AIB.
Em maio de 1938, os integralistas resolveram tentar destituir Vargas do poder, em parceria com militares — as ideias de extrema direita da AIB tinham muita penetração na Marinha, mas não tanto no Exército, segundo Gomes Vianna.
“A alma da conspiração […] foram os militares”, escreveu a autora.
A ideia era prender lideranças civis do governo e autoridades policiais; capturar estações de telégrafo, telefone, rádio e luz; bloquear pontes e tomar de assalto o Palácio Guanabara. Hoje sede do governo do Rio de Janeiro, o edifício foi, no Estado Novo, residência oficial do presidente.
Além disso, os golpistas queriam dominar sedes policiais e unidades navais.
“A maioria das ações planejadas não chegou a se realizar, por ausência de comando ou por absoluta incompetência dos mobilizados”, diz a historiadora.
Somente duas tiveram relevância, os ataques ao Palácio Guanabara e ao Arsenal da Marinha.
Na emboscada na residência presidencial, os invasores dominaram os guardas e abriram fogo contra os aposentos da família Vargas. Os reforços militares para protegê-los demoraram para chegar, até que o líder do ataque, o tenente do Exército Severo Fournier, fugiu pelo morro nos fundos do palácio.
A investida contra o Arsenal da Marinha também fracassou. No fim, o complô foi uma tentativa de golpe atrapalhada para derrubar um governo instituído por um golpe bem-sucedido.
Segundo reportagens da época, oito pessoas morreram — e Getúlio continuou no poder.
Tentativa de deposição de Getúlio Vargas (1954)
Vargas governava de novo o país, dessa vez eleito por voto direto em 1950, quando venceu o brigadeiro Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN). Foi a segunda derrota consecutiva de Gomes, que em 1945 perdera a eleição para Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro e candidato de Vargas.
Em 1953, a UDN elegeu um novo inimigo público: o novo ministro do Trabalho, João Goulart, então um jovem político relativamente pouco conhecido no país.
Para combatê-lo, o partido contou com o apoio maciço de uma velha aliada, a imprensa do eixo Rio-São Paulo, segundo as historiadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling em Brasil: Uma Biografia.
Jornais oposicionistas atribuíam ao ministro a liderança das grandes greves de trabalhadores que aconteciam no país. No ar, havia o temor que o Brasil seria governado por sindicatos.
“A mera evocação da ‘República sindicalista’ deixava a UDN de cabelo em pé, mas era uma peça de ficção — não existiu nem como projeto nem como alternativa de poder”, escreveram as autoras.
O jornalista e político Carlos Lacerda, o mais virulento desses oposicionistas e grande voz do conservadorismo na época, atacava o ministro sempre que podia — lembrando aos leitores que o herdeiro político de Vargas, apelidado de Jango, era um jovem de 34 anos solteiro, bonito, rico, boêmio e namorador.
“Joãozinho Boa Pinta deve sair do ministério e voltar ao cabaré, que é a sua universidade, a sua caserna e o seu santuário”, escreveu em seu jornal, o Tribuna da Imprensa.
Em janeiro de 1954, Jango apresentou sua proposta de reforma, atendendo às reivindicações do movimento sindical. A principal medida era dobrar o salário mínimo.
“A UDN estrilou no Congresso, os jornais oposicionistas cuspiram fogo, mas quem ameaçou mesmo a estabilidade democrática foram os quartéis”, segundo Schwarcz e Starling.
No mês seguinte, 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis do Exército entregaram uma carta a seus superiores, que fizeram questão de divulgá-la entre políticos da UDN e jornalistas alinhados.
Conhecido como “manifesto dos coronéis”, o texto acusava o governo de aceitar um clima de negociatas e dizia que uma crise de autoridade atingia as Forças Armadas, ameaçando o país com o risco de desordens. O documento afirmava também que a proposta salarial aumentava demais as contas públicas.
Jango não resistiu à pressão e deixou o cargo. Nesse clima de muita instabilidade, apenas seis meses depois, ocorreu o atentado da Rua Tonelero.
Nessa rua carioca, em 5 de agosto, um pistoleiro contratado por Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, atirou em Carlos Lacerda. Ele ficou ferido, mas o homem ao seu lado, o major da Aeronáutica Rubens Vaz, morreu.
O atentado fracassado corroeu a base política de Vargas. Generais divulgaram um novo manifesto, agora pedindo sua renúncia.
Ao sobreviver, Lacerda ganhou força política. A trama golpista poderia ganhar corpo, mas três semanas depois o presidente se matou com um tiro no peito.
Entretanto, os coronéis que assinaram o manifesto precisariam aguardar mais alguns anos para tomar o poder de vez.
Isso porque o redator do “manifesto dos coronéis” era Golbery do Couto e Silva, que teria papel central, dez anos depois, no Golpe de 1964 e na subsequente ditadura militar.
Além dele, outros futuros generais que participariam do regime, como Sylvio Frota e Ednardo d’Ávila Melo, assinaram o texto.