A Semana Santa que vivi na infância em Jaguarana
Por Raimundo Borges
O Imparcial – A Jaguarana é um lugarejo de simplicidade extrema, com casas de palha de babaçu e paredes de taipa de mão, cujos moradores vivem há mais de 150 anos, espalhados em moradias separadas por capões de mato, tabuleiros, riachos secos e morros. A vegetação de cerrado abriga espécies selvagens de tatu, cotia, paca, peba, aves, mambira e até onça-pintada.
Nesse ambiente ecologicamente sustentável, de agricultura de subsistência em roças de tocos, criação de gado e bode, a mecanização do agro ainda passa à distância. Mesmo assim, há uma união histórica entre as famílias que ainda cultivam roça coletiva em mutirões de “derrubar”, queimar, cercar, plantar, capinar e colher.
Gente simples, trabalhadora, religiosa e irmanada nas dificuldades e na fartura da boa colheita. Em Jaguarana, 3º Distrito de Caxias, a Semana Santa – no meu tempo de criança – era só de orações e cumprimento de rituais milenares. Como jejuar, abster-se de carne que não fosse peixe, visitar parentes, compadres e beijar a mão dos padrinhos como se pais fossem.
Era uma semana de entrega à fé, de trocas de alimentos da roça, de conversar no terreiro e de almoço farto em família. Tudo como ato de contrição e respeito à vida, morte e crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Castigar filhos, nem pensar. As estripulias ficavam para o ritual de “romper aleluia” no sábado, com cipó de tamarindo.
Minha mãe, Demétria, era católica praticante e estabelecia as regras da Semana Santa com o rigor dos tempos que se foram. Fiscalizava o cumprimento do jejum, organizava a mesa do almoço com uma bela torta de bacalhau, que papai comprava em Caxias com muita antecedência.
Ninguém tomava banho no açude até o Sábado de Aleluia; irmãos não brigavam, todos falavam baixo – o que criava um ambiente sombrio, mas não de medo. Nem dos espíritos vagantes que saem nesses dias santos em busca de adoração. Afinal, a Sexta-feira da Paixão e o Domingo de Páscoa marcam o fim da Quaresma.
E o que significa Quaresma? Há variações sobre o motivo dos 40 dias de abstinência e entrega máxima à fé cristã. Mas a tese mais aceita no mundo católico diz respeito aos 40 dias em que Jesus jejuou no deserto, local onde foi tentado pelo demônio, segundo relatos de Mateus, Marcos e Lucas – escritores que descrevem o sofrimento de Jesus, de quem foram apóstolos.
Por outro lado, essas tradições têm muita relação com o folclore, síntese de sentir, pensar e agir de um povo, normalmente transmitida oralmente, de geração em geração. São tradições trazidas de Portugal, entremeadas de mitos, lendas e costumes que dão sentido à vida e ao modo de se fazer, se portar e se conduzir como governos e igrejas, irmanados na fé.
Hoje, neste primeiro quarto do século XXI, Jaguarana “evoluiu”. O jumento se perdeu como principal meio de transporte de água, jacás de babaçu e carga geral. Foi abandonado e substituído por motos. A lamparina a querosene, até há 20 anos, foi trocada pela lâmpada do “Luz para Todos”, no governo Dilma Rousseff e do ministro Edison Lobão, das Minas e Energia.
A água do pote de Cantareira foi para a geladeira. A taipa de mão – aqui e acolá – é trocada por tijolos. Mas o inimitável som da chuva na coberta de palhas de babaçu ainda persiste nas moradias de Jaguarana. Já há uma escola pública onde se aprender, no povoado Mimoso, a cinco quilômetros da “sede” de Jaguarana.
A Escola de Mimoso foi resultado de um pedido deste jornalista à então prefeita Márcia Marinho. Ela não só a implantou, como colocou a primeira experiência de energia solar em uma unidade municipal de ensino no Maranhão. Anos depois, chegou a energia elétrica que “apagou” a lamparina da “tia” Lídia, uma agricultora de 103 anos que desafia a lógica da longevidade na pobreza extrema. Ela é exemplo de vida. Mora sozinha em sua casinha de taipa de mão, cozinhando em “fogão” de trempe e a gravetos.
Assim, nesta Semana Santa de 2025, não há mais as brincadeiras de banhos nos riachos do Crioli e das Cajazeiras – duas frutinhas saborosas. Também ficou só na memória a tradição de pedir a bênção aos padrinhos, do jogo de bola bexiga e do jejum que mamãe Demétria fiscalizava para não ser “quebrado”.
Muito linda suas lembranças, o que descolore o cenário e saber que ainda tudo se encontra da mesma de outrora, sem o desenvolvimento por falta de educação do povo sofrido, que só vê a luz do sol, disponibilizado pela natureza, um dia quem sabe virá dias recheados de infraestrutura!
Que lindo texto, tio! As lembranças que se tem da infância não se esquece jamais!
Sou gaúcho de Novo Hamburgo e estive recentemente visitando o Maranhão,mais especificamente Caxias e tive o prazer de passar um final de semana na Jaguarana em casa de dona Nazaré , filha de um Borges e ao ler este relato, pude me situar e ver cada cena relatada . Apesar da falta de infra estrutura o lugar e muito bonito e aconchegante. Parabéns pela matéria.
Tio, quero te parabenizar pela linda trajetória de vida que você construiu. Saber da sua infância em uma região com tantas dificuldades e ver tudo o que você conquistou através da educação é inspirador. Sua história é um verdadeiro exemplo de superação, determinação e força de vontade. Você mostra que, com coragem e esforço, é possível transformar realidades.
Que linda e verdadeira história, essa realidade é quase todos nordestinos do passado, também vivi esse momento. Parabéns para o Senhor Raimundo Borges!!!
Uma narração verdadeira!!! Um grande abraço…
Perfeitas suas lembranças, querido amigo. Uma excelente Páscoa para você e família.
Sempre admirei o modo como você fala de seu torrãozinho natal. Deixa sempre transbordar a saudade e o amor que sente pela sua gente conterrânea. Parabéns pela bela crônica!