22 de maio de 2025
Geral

A Semana Santa que vivi na infância em Jaguarana

Por Raimundo Borges

O Imparcial – A Jaguarana é um lugarejo de simplicidade extrema, com casas de palha de babaçu e paredes de taipa de mão, cujos moradores vivem há mais de 150 anos, espalhados em moradias separadas por capões de mato, tabuleiros, riachos secos e morros. A vegetação de cerrado abriga espécies selvagens de tatu, cotia, paca, peba, aves, mambira e até onça-pintada.

Nesse ambiente ecologicamente sustentável, de agricultura de subsistência em roças de tocos, criação de gado e bode, a mecanização do agro ainda passa à distância. Mesmo assim, há uma união histórica entre as famílias que ainda cultivam roça coletiva em mutirões de “derrubar”, queimar, cercar, plantar, capinar e colher.

Gente simples, trabalhadora, religiosa e irmanada nas dificuldades e na fartura da boa colheita. Em Jaguarana, 3º Distrito de Caxias, a Semana Santa – no meu tempo de criança – era só de orações e cumprimento de rituais milenares. Como jejuar, abster-se de carne que não fosse peixe, visitar parentes, compadres e beijar a mão dos padrinhos como se pais fossem.

Era uma semana de entrega à fé, de trocas de alimentos da roça, de conversar no terreiro e de almoço farto em família. Tudo como ato de contrição e respeito à vida, morte e crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Castigar filhos, nem pensar. As estripulias ficavam para o ritual de “romper aleluia” no sábado, com cipó de tamarindo.

Minha mãe, Demétria, era católica praticante e estabelecia as regras da Semana Santa com o rigor dos tempos que se foram. Fiscalizava o cumprimento do jejum, organizava a mesa do almoço com uma bela torta de bacalhau, que papai comprava em Caxias com muita antecedência.

Ninguém tomava banho no açude até o Sábado de Aleluia; irmãos não brigavam, todos falavam baixo – o que criava um ambiente sombrio, mas não de medo. Nem dos espíritos vagantes que saem nesses dias santos em busca de adoração. Afinal, a Sexta-feira da Paixão e o Domingo de Páscoa marcam o fim da Quaresma.

E o que significa Quaresma? Há variações sobre o motivo dos 40 dias de abstinência e entrega máxima à fé cristã. Mas a tese mais aceita no mundo católico diz respeito aos 40 dias em que Jesus jejuou no deserto, local onde foi tentado pelo demônio, segundo relatos de Mateus, Marcos e Lucas – escritores que descrevem o sofrimento de Jesus, de quem foram apóstolos.

Por outro lado, essas tradições têm muita relação com o folclore, síntese de sentir, pensar e agir de um povo, normalmente transmitida oralmente, de geração em geração. São tradições trazidas de Portugal, entremeadas de mitos, lendas e costumes que dão sentido à vida e ao modo de se fazer, se portar e se conduzir como governos e igrejas, irmanados na fé.

Hoje, neste primeiro quarto do século XXI, Jaguarana “evoluiu”. O jumento se perdeu como principal meio de transporte de água, jacás de babaçu e carga geral. Foi abandonado e substituído por motos. A lamparina a querosene, até há 20 anos, foi trocada pela lâmpada do “Luz para Todos”, no governo Dilma Rousseff e do ministro Edison Lobão, das Minas e Energia.

A água do pote de Cantareira foi para a geladeira. A taipa de mão – aqui e acolá – é trocada por tijolos. Mas o inimitável som da chuva na coberta de palhas de babaçu ainda persiste nas moradias de Jaguarana. Já há uma escola pública onde se aprender, no povoado Mimoso, a cinco quilômetros da “sede” de Jaguarana.

A Escola de Mimoso foi resultado de um pedido deste jornalista à então prefeita Márcia Marinho. Ela não só a implantou, como colocou a primeira experiência de energia solar em uma unidade municipal de ensino no Maranhão. Anos depois, chegou a energia elétrica que “apagou” a lamparina da “tia” Lídia, uma agricultora de 103 anos que desafia a lógica da longevidade na pobreza extrema. Ela é exemplo de vida. Mora sozinha em sua casinha de taipa de mão, cozinhando em “fogão” de trempe e a gravetos.

Assim, nesta Semana Santa de 2025, não há mais as brincadeiras de banhos nos riachos do Crioli e das Cajazeiras – duas frutinhas saborosas. Também ficou só na memória a tradição de pedir a bênção aos padrinhos, do jogo de bola bexiga e do jejum que mamãe Demétria fiscalizava para não ser “quebrado”.

7 comentários sobre “A Semana Santa que vivi na infância em Jaguarana

  • Muito linda suas lembranças, o que descolore o cenário e saber que ainda tudo se encontra da mesma de outrora, sem o desenvolvimento por falta de educação do povo sofrido, que só vê a luz do sol, disponibilizado pela natureza, um dia quem sabe virá dias recheados de infraestrutura!

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  • Que lindo texto, tio! As lembranças que se tem da infância não se esquece jamais!

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  • Sou gaúcho de Novo Hamburgo e estive recentemente visitando o Maranhão,mais especificamente Caxias e tive o prazer de passar um final de semana na Jaguarana em casa de dona Nazaré , filha de um Borges e ao ler este relato, pude me situar e ver cada cena relatada . Apesar da falta de infra estrutura o lugar e muito bonito e aconchegante. Parabéns pela matéria.

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  • Tio, quero te parabenizar pela linda trajetória de vida que você construiu. Saber da sua infância em uma região com tantas dificuldades e ver tudo o que você conquistou através da educação é inspirador. Sua história é um verdadeiro exemplo de superação, determinação e força de vontade. Você mostra que, com coragem e esforço, é possível transformar realidades.

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  • Que linda e verdadeira história, essa realidade é quase todos nordestinos do passado, também vivi esse momento. Parabéns para o Senhor Raimundo Borges!!!
    Uma narração verdadeira!!! Um grande abraço…

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  • Perfeitas suas lembranças, querido amigo. Uma excelente Páscoa para você e família.

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  • Sempre admirei o modo como você fala de seu torrãozinho natal. Deixa sempre transbordar a saudade e o amor que sente pela sua gente conterrânea. Parabéns pela bela crônica!

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