10 de novembro de 2025
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O ‘roubo’ que mudou a história de Belém e da Amazônia — e suas lições para a cidade da COP30

O ano era 1876 e o local era o porto de Belém do Pará. O inglês Henry Wickham, a bordo do transatlântico SS Amazonas, estava nervoso. Um atraso poderia arruinar a carga valiosa e perecível que ele carregava no porão: 70 mil sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira.

Às autoridades portuárias paraenses, ele declarou que dentro das caixas havia “amostras botânicas extremamente delicadas” destinadas ao Jardim Botânico Real de Kew Gardens, de propriedade de “Sua Majestade Britânica”, a rainha Vitória, em Londres.

“Na minha mente, eu tinha toda a certeza de que se as autoridades descobrissem o objetivo do que eu tinha a bordo, seríamos detidos sob a alegação de que necessitavam de instruções do governo central do Rio, se é que não seríamos interditados”, escreveu Wickham nas suas memórias.

Liberado para cruzar o Atlântico, numa viagem “calma e azul”, o inglês deixava para trás uma cidade em obras que estava se transformando em uma das mais modernas e pujantes das Américas, mas não por muito tempo.

Como a elite de Belém iria descobrir algumas décadas mais tarde, o objetivo encoberto pelo inglês era puramente econômico: estabelecer uma indústria de cultivo de seringueiras, então exclusivas da Amazônia, do outro lado do mundo, nas colônias britânicas na Ásia.

E ele foi cumprido.

Wickham ao lado de uma seringueira plantada a partir de semente levada por ele a partir da Amazônia
Wickham ao lado de uma seringueira plantada a partir de semente levada por ele da Amazônia

Naqueles anos, a industrialização nos países da Europa e nos EUA crescia a um ritmo rápido, e a demanda pela poderosa borracha encontrada no Brasil, que passou a ser usada em pneus e máquinas, explodia.

“Na década de 1860, você chega a uma situação em que o preço da borracha que chega aos portos de Londres é maior do que o da prata”, conta à BBC News Brasil Caroline Cornish, coordenadora de pesquisa em humanidades do Kew Gardens, em Londres, instituição da realeza que contratou os serviços de Wickham.

“As potências imperiais perceberam que, se quisessem expandir suas indústrias a um preço acessível, teriam que assumir o controle de seu próprio suprimento de borracha. Então foi isso que motivou todo o projeto de tirar sementes do Brasil e replantá-las, no nosso caso, em territórios britânicos no Sudeste Asiático.”

No Jardim Botânico de Londres, apenas 2,6 mil das sementes levadas por Wickham germinaram, e foi o suficiente para serem transplantadas a países como Singapura, Malásia e Sri Lanka, onde se adaptaram com sucesso.

As vantagens dos seringais asiáticos criados pelos ingleses em relação aos brasileiros eram enormes. No Brasil, muitos seringais eram acessíveis somente por via fluvial, com meses de viagem entre o local de extração do látex e o destino final.

As seringueiras também estavam espalhadas pela floresta, não concentradas em um só lugar.

Na década de 1910, diante da nova concorrência concretizada, a economia amazônica, que vinha se baseando quase exclusivamente na exploração da borracha, ruiu.

“Essa economia se revela, na verdade, desde muito cedo, uma economia muito frágil, muito dependente de uma única commoditie e dos preços do mercado internacional”, explica Nelson Sanjad, especialista no ciclo da borracha no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.

Belém do Pará
Belém era o porto por onde saía a borracha da Amazônia em direção à Europa

A travessia de Wickham da Amazônia à Europa naquele ano, portanto, marcou o início do fim do que foi chamado de “ciclo da borracha”, o auge da economia da região entre o fim do século 19 e início do século 20.

Era também o início de uma decadência de cidades como Manaus e Belém, transformadas durantes décadas em centros de riqueza, de arquitetura europeia e pioneiras em reformas urbanas, como a implantação de sistemas de iluminação elétrica.

Para os milhares de brasileiros que haviam se mudado para as periferias amazônicas, atraídos pela fascinação quase mítica da borracha, restou a floresta que o mundo pela primeira vez dava as costas.

Agora, sede da Conferência da ONU sobre Mudança Climática, a COP30, Belém traz os olhos do mundo de volta para a floresta. Dessa vez, para enxergar nela não o que se pode extrair, mas o que se pode preservar.

A BBC News Brasil mergulhou nessa história (veja também em vídeo) e ouviu dos especialistas os aprendizados – sobre biodiversidade, desenvolvimento e desigualdade – que os altos e baixos do ciclo da borracha podem trazer para vida atual de Belém e da floresta.

Wickham, ladrão?

A colheita das sementes de seringueiras na região do rio Tapajós, no oeste do Pará, e a passagem por Belém são descritas pelo próprio Wickham como uma “farsa” montada e um “contrabando”, como relata o escritor Joe Jackson no livro O ladrão do fim do mundo (Editora Objetiva).

Mas, para o pesquisador Nelson Sanjad, do Museu Paraense Emílio Goeldi, parte dessa narrativa foi usada pelo próprio Wickham para dar contorno de heroísmo à sua história.

Pelos serviços prestados à coroa britânica, ele chega a receber o título de cavalheiro da Ordem do Império Britânico, tornando-se “Sir”, em 1920.

Mas o que de Wickham de fato fez, segundo Sanjad, foi completar um processo que muitos exploradores europeus tentavam concluir naquele momento: levar as seringueiras para fora do Brasil.

Henry Wickham
Henry Wickham foi visto como herói no Reino Unido

“Ele é a pessoa que teve talvez as condições apropriadas, no momento certo, para fazer essas coletas, o trabalho de reprodução no jardim botânico e a organização da produção em larga escala no mundo colonial europeu”, diz o pesquisador.

Além do inglês, os franceses e holandeses tentaram realizar o mesmo processo com plantações no Vietnã e na Indonésia, respectivamente, mas sem o sucesso britânico.

“Agora é um fato que ele se torna o ícone, o símbolo da falência dessa economia da Amazônia”, completa Sanjad.

Contatado pelo Kew Gardens, Wickham já vivia na Amazônia, na região de Santarém (PA), com vínculos com os chamados federados, americanos fugidos da guerra civil no Sul dos Estados Unidos.

“Ele certamente conhecia bem a terra, as pessoas e consegue reunir as 70 mil sementes em questão de poucos dias”, relata a pesquisadora Caroline Cornish, do Kew Gardens.

Apesar de a coleta das sementes e a transferência para Londres ser descrita como “roubo” e um dos primeiros casos de “biopirataria”, os termos também são alvo de debate.

“Se você está apenas olhando para a estrutura legal na época, não havia uma lei sobre a exportação de sementes de borracha do Brasil. Então, não era tecnicamente ilegal, mas obviamente também não era completamente ético”, diz Cornish, em Londres.

Em Belém, Nelson Sanjad reforça que não havia uma legislação que apontasse uma ilegalidade da ação naquela época e que, portanto, não deve ter sido difícil para Wickham sair do Brasil com o navio cheio.

“Eu creio que considerar isso biopirataria ou tráfico seja um anacronismo”, avalia. Isso é, avaliar um fato do passado com as lentes de hoje.

“Nós temos notícias de naturalistas que entram na Amazônia e levam milhares de plantas, animais e artefatos indígenas. Essa é uma prática comum no século 19, uma prática colonial de apropriação.”

A seringueira é nativa da floresta Amazônia
A seringueira é nativa da floresta Amazônia

“Acho que o mais importante de tudo isso não é julgar e condenar, mas tentar entender essas formas de controle, de produção, de colonialismo, que estão em jogo nesse momento, no século 21, para que isso não se perpetue”, conclui Sanjad.

Representando o Kew Gardens, Caroline Cornish diz que o jardim botânico de Londres “reconhece que o colonialismo foi um processo extrativista, que foi um dos muitos atores envolvidos nesse movimento e em todas as consequências ambientais, humanas e econômicas”.

Das bolas indígenas aos pneus Michelin

Seja para impermeabilizar objetos ou para a fabricação de bolas usadas em brincadeiras, os povos indígenas da Amazônia já usavam o látex séculos antes dos primeiros contatos com os europeus.

Em 1730, acontece um marco importante do conhecimento do látex no outro lado do mundo, com a viagem do explorador francês Charlie Marie de La Condamine.

Em expedição pelo rio Amazonas, ele convive com indígenas Omágua e começa a escrever sobre a borracha utilizada por aquele povo. Os relatos logo se espalham pela Europa.

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