27 de julho de 2024
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Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou ‘escondido’ nos arquivos do IBGE

O Brasil vivia a rebarba do milagre econômico — período de acelerado crescimento na primeira metade da Ditadura Militar (1964-1985) — quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou nas ruas 1.200 pesquisadores para percorrer o país e investigar o consumo das famílias, em especial a alimentação, numa das pesquisas mais ousadas e pioneiras da instituição.

Durante 1974 e 1975, o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef) acompanhou 55 mil residências em todos os Estados, em áreas ruais e urbanas, por sete dias, período em que os pesquisadores acompanhavam os hábitos alimentares dos moradores em todas as refeições, inclusive pesando os alimentos e as sobras.

Para que as famílias não tivessem receio em abrir seus lares e seus hábitos para os pesquisadores, foi lançada a campanha “Abra a porta para o IBGE”, com a atriz Regina Duarte como garota-propaganda.

A ampla pesquisa tinha “objetivos múltiplos para atender, basicamente, as necessidades de planejamento do governo”, dizia uma publicação de 1978 com parte dos resultados. O IBGE precisava conhecer melhor o consumo das famílias para desenvolver índices de preço (medidas de inflação), indicadores sociais e aperfeiçoar o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).

Ou seja, o Endef serviria como base para outras pesquisas fundamentais para entender o país e planejar a atuação do Estado, naquele momento regido por uma ditadura — regime iniciado há sessenta anos, com o golpe de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente João Goulart.

Esperava-se também, com a pesquisa, obter uma mapa das deficiências alimentares da população. A importância do levantamento era exaltado em editorial do Jornal do Brasil de agosto de 1974, quando teve início o trabalho de campo.

“Acaba o IBGE de iniciar, em âmbito nacional, um recenseamento menos espetacular que o da população, mas que poderá exercer incalculável influência no planejamento nacional e na própria humanização do país”, dizia o jornal.

Cartaz com Regina Duarte sorrindo em que se lê: Abra a porta para ao IBGE
Regina Duarte, a ‘namoradinha do Brasil’, foi contratada como garota propaganda do Endef

O aspecto mais inovador do estudo, porém, não serviria diretamente aos objetivos estatísticos, embora fosse considerado essencial para entender as condições de população pelo diretor do Endef, o sociólogo e ex-oficial da Marinha Luiz Afonso Parga Nina.

Por ideia dele, foi inserido nos questionários um espaço para anotação livre, em que era sugerido

aos pesquisadores que fossem relatados suas impressões pessoais sobre a situação dos entrevistados e a realização das entrevistas.

O resultado foi um registro detalhado da miséria e da fome que atingiam boa parte da população, apesar do ritmo acelerado de crescimento econômico dos anos anteriores. Essa parte do estudo foi publicado, mas acabou tendo sua circulação restrita, levantando suspeitas de censura pela Ditadura Militar, algo que não chegou a ser comprovado e até hoje é alvo de controvérsia.

“Já fizemos uma média de 120 domicílios, estando 70% na faixa de nível baixo, 20% casos extremos e 10% pessoas que conseguem o necessário para viver. Neste último caso, considero as pessoas que têm um emprego fixo, mas vivem privadas de muita coisa ainda”, diz um dos relatos sobre a pesquisa em Uberlândia (MG).

“Nas duas primeiras faixas, a base da alimentação é farinha de mandioca muito grossa feita em casa. O vestuário é sempre doado e, nos casos extremos, as pessoas cobrem o corpo com trapos disformes e imundos que cheiram mal”, continuava.

Outro relato, de uma pesquisadora que atuou em Boa Vista (RR), descrevia sérios problemas de saúde da população local: “Devido à má alimentação, são seres totalmente predispostos aos males do meio ambiente. Desde que uma dessas famílias tinha vindo do interior, ninguém pergunta se não teve ‘malária’ ou até mesmo ‘hepatite’ porque são doenças comuns no interior.”

“Mediante as dificuldades na compra dos remédios, são pessoas que ficam maltratadas para o resto da vida. As mulheres não são privilegiadas. Depois do primeiro filho, perdem logo os dentes (falta de cálcio) e sofrem as consequências de um parto mal feito durante muito tempo”, segue o relato.

“Em um domicílio, o homem da casa está enfraquecido devido à falta de alimentação e a senhora dele está débil mental em consequência de um parto mal feito. As crianças são raquíticas, de cor pálida e frequentemente com tosse”, descreveu ainda a pesquisadora.

No interior do Paraná, são vários os relatos da equipe do IBGE sobre a dura vida das famílias de boias-frias, que trabalhavam por diárias em fazendas da região.

“A fome tomava conta dos pequenos corpos humanos que habitavam a bela fazenda de café. (…) Soubemos de uma família que ia para o trabalho sem a pequena marmita de almoço, substituíam-no por ‘coco guavirova’ ou até chegavam ao extremo de comer folha seca de café.”

A BBC News Brasil teve acesso à publicação original da pesquisa — hoje disponível online — e a um compilado de relatórios semestrais dos pesquisadores do Endef produzido pelo setor de memória do IBGE em 2014.

‘Distribuição restrita’

A BBC News Brasil conversou com o servidor aposentado do IBGE Maurício Vasconcellos, que atuou por anos em diferentes etapas do Endef e, depois, chefiou alguns setores do instituto, como o Departamento de Censo Demográfico.

Ele acompanhou parte do trabalho de campo e chegou a presenciar a morte de um bebê durante o processo de entrevista, devido à extrema vulnerabilidade da família, mas não quis contar detalhes para não se emocionar.

“Esse estudo é terrível, porque, se você for ler, você vai chorar o tempo todo”, recorda.

Ele se refere a uma publicação que ganhou o nome de “Estudo das informações não estruturadas do Endef e sua integração com os dados quantificados”, produzida por Parga Nina, a partir dos relatos de campo.

Empolgado com a riqueza desse material, o diretor do Endef solicitou relatórios semestrais sobre as pesquisas de campo e sistematizou o material nessa publicação, criando categorias para os relatos, como “penúria alimentar”, “condições de saúde e higiene”, “emprego-desemprego” e “vida familiar”.

“É evidente que algo deve ser feito para captar o que as equipes de campo observaram, sentiram, viveram, ao longo desse ano de trabalho. Seria absurdo não fazer esta tentativa, e estariam perdidas informações que podem ser tão importantes e, em certos aspectos, mais importantes que os dados dos questionários”, dizia a introdução do trabalho.

“Não há nenhum sentido em procurar entender a ‘realidade sócio-econômica’ através de pesquisas, em qualquer campo, se não houver também um esforço para tentar compreender, por um mínimo de convivência, de simpatia, de contato direto, a dimensão humana do que está sendo investigado”, reforça outro trecho.

Apesar da grande importância dada a esse trabalho, ele não foi divulgado ao público. Foi impressa uma pequena tiragem de 250 cópias e algumas delas foram enviadas sem alarde a órgãos públicos e bibliotecas, como o Ministério da Saúde e algumas universidades.

Alguns volumes da publicação que permanecem nos arquivos do IBGE tem em sua capa escrita a mensagem “Distribuição restrita”, em letra cursiva que seria de Parga Nina.

Há também volumes com o carimbo de “confidencial”, que, segundo Maurício Vasconcellos, foram adicionados por ele depois, já após à ditadura, quando exemplares que estavam com a família de Parga Nina retornaram ao IBGE, após a morte dele.

Ele disse à reportagem que tinha receio que de alguns relatos permitissem identificar os entrevistados, ferindo o sigilo que é legalmente garantido às pessoas pesquisadas.

Na sua visão, a decisão de não divulgar o material amplamente nos anos 1970 teria partido do próprio Parga Nina.

“Eram informações brutais, situações horrorosas. Aí ele publicou esses livros e decidiu fazer uma distribuição restrita”, lembra.

Na sua visão, não houve uma censura direta do regime.

“A censura estava na imprensa. O IBGE publicava o que queria. Se o dado desagradasse o governo, ele não ia para o jornal. A gente tinha total liberdade para fazer o que quisesse e fazia”, contou.

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Um comentário sobre “Famílias famintas e mães desdentadas: o retrato da miséria na ditadura que ficou ‘escondido’ nos arquivos do IBGE

  • É daí pra pior q os bozominions querem pra atualidade do país, Deus nos livre dessas mentes ignorantes, preconceituosas, e maldosas desse povo, q pode levar o Brasil ao retrocesso! Vamos seguir lutando e conscientizando essa gente meu povo!!

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